O Prólogo Joanino – II
João 1:1-18
Dr. Jorge Pinheiro
Como vimos na última exposição, João utiliza o conceito grego de Logos para se referir à Palavra de Deus. Como judeu que era, João conhecia Génesis 1:1 e sabia que no princípio Deus criara os céus e a terra. Também sabia que a primeira coisa que Deus fizera foi falar, foi usar a palavra. João sabia que a Palavra de Deus era criadora e poderosa e representava o próprio Deus Iavé, porque era através dela que todo o universo podia conhecer a vontade de Deus e por meio dela conhecer o próprio Deus.
Esta ideia de resto está presente em todo o Prólogo que termina identificando a Palavra de Deus com a pessoa de Cristo. Daí afirmar que “o Verbo se fez carne” (v. 14) e que: “o Filho Unigénito [Jesus] que está no seio do Pai tornou Deus conhecido.” (v. 18).
Por esse motivo, não está descabido afirmar que Jesus é a Palavra, ou melhor dizendo, é a Palavra de Deus tornada ser humano.
O Prólogo fala assim da origem de Jesus e é interessante notarmos a forma como cada um dos quatro evangelistas se refere às origens de Jesus e relacionar com a intenção de cada um.
Mateus apresenta-O como o Rei Messias. Por isso, regista a sua genealogia, entroncando-a em David. Todo o pretendente ao trono tinha de demonstrar a sua ascendência real.
Marcos apresenta-O como servo. Naquele tempo um servo não tinha direitos por ser considerado uma mercadoria descartável. Ora, Marcos não regista qualquer genealogia.
Lucas apresenta-O como um verdadeiro Homem, experimentado nos condicionalismos humanos e a genealogia que Lucas indica entronca no primeiro homem, Adão.
João apresenta-O como Filho de Deus, sem início e sem fim e por isso não tendo Ele genealogia, João não indica nenhuma.
Devido a essa característica do evangelho de João, é justo afirmar que a preocupação do evangelista não é tanto a descrição histórica mas uma interpretação teológica da acção, principalmente da pessoa de Jesus, como já havíamos dito.
É por causa deste carácter teológico que não podemos considerar este “No princípio” como uma categoria cronológica, temporal ou histórica. João remete-nos para um momento em que não havia tempo, ou seja, para a Eternidade. De facto, é na eternidade, que não está sujeita ao presente, ao passado ou ao futuro, que vamos encontrar tudo quanto a Ele diz respeito. Como João se refere a esse princípio que era antes de tudo quanto de físico existia, portanto antes de nós mesmos, faz todo o sentido dizer que “no princípio era o Verbo” e não que “no princípio foi o Verbo.” E temos de dizer “era” porque se tivéssemos a capacidade de retroceder no tempo (passado), em qualquer momento em que estivéssemos, encontraríamos sempre o Logos, o Verbo, enquanto se disséssemos “foi o Verbo”, estaríamos a afirmar que num dado momento dessa nossa vagem imaginária o Verbo passou a existir o que equivale a dizer que num momento existia, mas no momento imediatamente anterior, era inexistente.
Se nos ficarmos por uma análise estritamente literária, verificamos que este Prólogo assume um carácter poético que segue o modelo da poesia hebraica. De facto, há uma série de unidades de pensamento que se espalham por subunidades ligadas entre si pela copulativa “e”, em que cada frase acrescenta algo de novo à frase anterior. Vejamos alguns exemplos:
No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus. (1:1)
Temos aqui uma unidade de pensamento cujo centro é o Verbo e ela começa com uma afirmação (no princípio era o Verbo) e cada linha acrescenta algo novo à anterior, concluindo com a frase: “ele estava no princípio com Deus.”
Temos um segundo exemplo, no versículo 3:
Todas as coisas foram feitas por ele
e sem ele nada do que foi feito se fez.
A afirmação de o Verbo ser o Criador é reforçada pela frase seguinte.
Num terceiro exemplo, detectamos:
Nele estava a vida
e a vida era a luz dos homens
e a luz resplandece nas trevas
e as trevas não a compreenderam.
Poderíamos continuar e chegaríamos não só à mesma conclusão como também a que cada unidade de pensamento acrescenta algo de novo à anterior.
Se nos ficarmos apenas por estes três exemplos, teríamos os seguintes elementos que neles surgem:
- o Verbo (v. 1,2)
- o acto criador do Verbo
- o Verbo traz a vida
- o Verbo era a luz.
Se continuássemos, chegaríamos à manifestação da verdade (v. 17) e à revelação máxima de Deus traduzida em comunhão (v. 18).
Em conclusão, embora poético, o Prólogo não se limita à forma poética mas leva o leitor numa progressão de conteúdo. Podemos dizer que é uma poesia que não preferencia o lirismo, ou seja, os estados de alma, mas apresenta-se profundamente apologética. Nela, há um crescendo interligado de acção e caracterização do Verbo, da Memrah, do Logos, da Palavra de Deus, que culmina na Encarnação (v. 14) e na Comunhão (v. 18).
Numa análise mais apologética, podemos encontrar seis secções neste Prólogo:
1. O Verbo e a Deidade (v.1)
O primeiro predicado do Verbo é a sua identificação com Deus Iavé. Por isso, podemos dizer que entre os designativos “divindade do Verbo” e “deidade do Verbo”, é preferível esta última expressão porque é ela que está no pensamento joanino. É que enquanto “divindade” se reporta ao qualificativo divino, já “deidade” assinala não a qualidade de ser divino mas a de ser idêntico a Deus. Assim, deste primeiro versículo, podemos concluir que aquilo que Deus é, o Verbo também o é. Se Deus é eterno, criador e pessoal, então o Verbo também é eterno, criador e pessoal, pelo que João nos diz que o Verbo é co-igual de Deus.
2. O Verbo é criador (vv. 2,3)
Naturalmente sendo co-igual de Deus e sendo Deus criador, então o Verbo também o é. Daqui uma conclusão se impõe: no evangelho de Cristo não há lugar para o panteísmo! Embora tendo a marca do dedo de Deus, a Natureza não é Deus porque foi criada por Ele. Logo, não é sua co-igual.
João não está sozinho na afirmação de que o Verbo é Criador. Paulo já o afirmara em Colossenses 1:15- 17: O qual [Jesus] é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação, porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam principados, sejam potestades, tudo foi criado por ele e para ele e ele é antes de todas as coisas e todas as coisas subsistem por ele.
3. O Verbo é a fonte da vida, sendo por via disso a luz dos homens (vv. 4,5,9)
Estas são afirmações de grande importância. De si próprio, Jesus disse ser a vida e a luz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará em trevas mas terá a luz da vida” (João 8:12). Note-se esta expressão “luz da vida”, em que os dois conceitos estão inseparáveis. Não há vida sem luz, não há luz sem vida.
Recordemos também que o primeiro elemento que surge na criação é a luz: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Génesis 1:3). No mundo físico, a luz é indispensável, é essencial. Sem luz, a vida física torna-se impossível e todos sabemos que os seres vivos são atraídos para a luz, o chamado fototropismo. De igual modo, no mundo espiritual, sem luz não é possível haver vida espiritual que no Evangelho é designada por “vida eterna.” Quem não tem, quem não recebe esta luz espiritual permanece em trevas, que o mesmo é dizer que está morto espiritualmente.
Nestes versículos, João vai mais longe e declara (v. 5) que há um antagonismo entre trevas e luz, que as duas não podem coexistir harmonicamente.
4. O Verbo manifestou-se ao mundo e aos homens (vv. 10-11)
O termo “mundo” é usado na Bíblia com diversos significados. Pode referir-se a este planeta (João 17:5); ao conjunto dos seres humanos (João 3:16) ou ao sistema ideológico oposto a Deus (João 15:18; 1 João 2:15).
O versículo menciona esse termo por três vezes. Nas duas primeiras, indica o mundo físico, enquanto na terceira, identifica o conjunto dos seres humanos. No versículo 11, João especifica que aqueles entre os quais viveu (“os seus”) não receberam Jesus na sua qualidade de Verbo. Este “os seus” tanto se pode referir à humanidade em geral como mais especificamente ao povo no qual o Verbo nasceu, os Judeus.
5. O Verbo humanou-se, fez-se carne, fez-se um com os que o aceitam (vv. 12-14)
Nesta secção, temos o momento alto, o clímax da manifestação do Verbo – a sua encarnação. Ao humanar-se, o Verbo não perdeu a sua natureza divina mas reuniu em si as duas naturezas, a divina e a humana, juntando em si aquilo que estava separado pela ocorrência do pecado A Encarnação revela que Deus e o Homem podem estar em sintonia mas que tal só é possível na pessoa de Jesus, o Verbo, e apenas através d’Ele.
O versículo 12 deixa bem claro que a bênção trazida pela encarnação está disponível pela recepção e aceitação da luz e da vida que se encontram no Verbo e que o meio para que tal aconteça é a fé, ou seja, a aceitação incondicional da oferta do Verbo: “Eis que estou à porta e bato”.
6. O Verbo reúne em si a Graça e a Verdade (vv. 16-18)
João aponta a manifestação do Verbo entre os homens como o ponto-charneira de encontro entre a graça e a verdade.
Refere a Lei dada por Moisés e contrapõe-na à Graça e à Verdade trazidas por Jesus Cristo.
Qualquer análise honesta da natureza da Lei de Moisés conclui que ela contém a verdade. Tendo Moisés recebido de Deus a Lei, esta conterá necessariamente a verdade, porque Deus é verdade. No entanto, devido ao seu carácter punitivo, podemos dizer sem exagero que a Lei sobrepõe a Verdade à Graça, que fica assim abafada. E embora possa parecer contraditório, a Graça não está totalmente ausente da Lei. E porquê? Porque a Graça define-se como o favor imerecido que recebemos de Deus. E Deus, ao dar a Lei, estava a mostrar que é um Deus gracioso ou misericordioso porque não deixa os Seus sem uma orientação, não deixa os Seus sem o conhecimento da verdade da Sua vontade.
Então, qual é a novidade trazida pela encarnação de Jesus? É que n’Ele, a Graça e a Verdade estão de mãos dada sem sobreposição de uma sobre a outra. Se conhecemos a Verdade, então necessitamos de apreciar e de viver sob e com a Graça de Deus. E se conhecemos e experimentamos a Graça, precisamos de conhecer em pleno a Verdade de Deus. Não podemos viver com uma sem a outra.
É que, como disse alguém, a Verdade sem a Graça é condenatória, enquanto a Graça sem a Verdade é enganadora.
Ora, o único que está em condições de mostrar que as duas, a Graça e a Verdade, são irmãs gémeas e não rivais, é o Logos, a Memrah, a Palavra de Deus encarnada, em suma, a pessoa de Jesus que é a Verdade divina personificada na Graça eterna de Deus.
SAC, 22.Março.2022