O ÚLTIMO VERSO DO SALMO 23
João Tomaz Parreira
“E habitarei na casa do Senhor por longos dias” , 23,6
Este verso, ao contrário do que pode parecer, não remete exclusivamente para a eternidade, ou o post mortem do crente, revela-se e amplifica-se no seu sentido maior, que cada momento da nossa vida será preenchido com as mais ricas bençãos de Deus.
Os versos da poesia bíblica, designadamente nos Salmos, não têm que ter apenas uma leitura submetida a uma única contextualização e uma aplicação literal fechada, tão pouco uma leitura exclusivamente alegórica, neles existe história ( a história de Israel e a do homem como criatura de Deus) como existe teologia, louvor e adoração; por vezes até o Eu poético, num registo intimista, amargurado e arrependido diante do Senhor ( vd o 51).
Particularmente o último verso do Salmo do Pastor, podemos lê-lo de dois modos e dar-lhe a dimensão da eternidade a partir do tempo. Podemos ler o que está lá e o que não está, numa metalinguagem divina. De um modo ou de outro, lê-lo é também um exercício semântico que não dispensa a leitura contextual do verso anterior (vs 5).
O parágrafo que separa ambos os versos 5 e 6, como uma divisão apenas tipográfica que une duas frases num texto, completa todo o sentido de um lugar habitável em que o anfitrião prepara a mesa, proporciona abundância de bens metaforizada no “cálice que transborda”, dá hospitalidade e unge segundo as normas orientais. E nessa habitação não há lugar para os inimigos dos convidados.
Nestes dois versos temos a figura da casa, como habitação onde somos hóspedes de Deus, e sobretudo a narrativa poética da comunhão com Deus na graça e na bondade divinas todos os dias. A partir deste ponto, podemos ler com uma perspectiva mais alargada, o derradeiro verso com que o salmo termina.
Dividindo assim o verso em elementos, do ponto de vista linguístico observamos o que a frase nos transmite.
“E habitarei” - é em si mesma, literalmente, uma expressão que fala de permanência. No grego da Septuaginta ( a Versão dos 70), no Salmo 23 encontramos o termo katoikein, que significa “lugar onde se vive” e contêm o substantivo “casa” ( oikos).
“na casa do Senhor” - A casa do Senhor poderia ser exclusivamente uma metáfora do Céu, mas parece-nos que o contexto não é isso que nos diz, razão pela qual alguns comentaristas tendem a estender o significado. Mas stricto sensu quer significar quase sempre, como sabemos, o Templo e não o Céu.
A verdade é que tanto no Velho como no Novo Testamento, no grego, quando os autores sagrados falam do Céu ou Céus, fazem-no de um modo literal para falar de firmamento ou da habitação de Deus.
Os termos usados em dois salmos significativos são comuns e idênticos na tradução grega do Velho Testamento já citado. Salmos 8, 3 e 73,25.
Neles a palavra “Ouranos” é também metáfora perceptiva para falar do divino, da divindade do lugar. No grego da literatura clássica tinha também um significado merecedor de nota, era “aquilo que é apropriado para um deus”, isto é, um lugar divino.
Deste modo e seguindo a linguagem poética salmódica, o que o autor sagrado (David ou o autor desconhecido de um dos Cânticos dos Degraus, no Salmo 122 ) quer dizer qundo escreve “casa do Senhor”, é perceptível como sendo o lugar onde Deus está eclesialmente, o templo, a casa de oração, o lugar onde os crentes se reunem para louvar, adorar e aprender as Escrituras Sagradas, onde estiverem “dois ou três reunidos em meu nome” – disse Jesus Cristo.
Com efeito, na linguagem grega esta figura perceptiva é clara: “oikõ kuriou”.
“para todo o sempre” ou “ao longo dos dias”
A versão da chamada Bíblia dos Capuchinhos exara deste modo o final do salmo: “A minha morada será a casa do Senhor ao longo dos dias.”
No VT as alianças de Deus com o Seu povo referiam-se ao tempo, aos dias (Ecl 12,1), mas dado o carácter da lógica da aliança divina, que não tinha falhas nem fim, dirigiam-se também para a eternidade.
A expressão na Septuaginta é, deste ponto de vista, clara: makroteta émerõn; indica uma longa distância de dias, o que vai no sentido da conhecida frase coloquial “aquela pessoa teve uma longa vida”.
A longevidade dos dias neste precioso quanto simples salmo, já chamado “canção da fé” e “de beleza tranquila”, alongam-se para a eternidade. No tempo, porém, vai colocando ao dispôr da ovelha ( metáfora perceptiva) um acervo de bençãos. “A maior das bençãos será uma comunhão íntima com Deus através da continua adoração” (1) na vida e na comunidade do crente.
No decurso de milénios, desde a data em que foi composto, este poema bíblico de várias metáforas extensivas, de fácil percepção, que começa com uma metáfora tomada da vida pastoril e bucólica, tem dado serenidade e confiança ao crente com a presença divina, mesmo no vale da sombra da morte. Porque além desta está a eternidade.
Finalmente, o sentido prático do derradeiro verso do Salmo 23 foi bem interpretado no livro “Formosa Herança” do saudoso pastor e amigo Alfredo R. Machado: “ Estas palavras além de fazerem referência à eterna habitação de Deus, também se aplicam ao nosso desejo de regularmente estarmos presentes nos cultos da Casa de Oração, juntamente com todos os santos”. (2)
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(1) Comentário Bíblico Moody, Vol 2, Josué a Cantares, pág. 377, Pfeiffer e Harrison, IBR
(2) Pág. 67, CPAD e CAPU, 2006
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