A MORTE VOLUNTÁRIA

A MORTE VOLUNTÁRIA

“Então, Saul tomou a espada e se lançou sobre ela.” I Samuel,31:4.

SJTP3aul não foi um herói paradigmático, embora trágico, por isso a sua morte é sem louvor bíblico. Embora David tenha feito uma elegia para o Livro dos Justos, mas essa morte entra no acto deplorável e não recomendável do suicídio. E um suicídio levou a outro.

Algumas culturas muito posteriores iriam ver este acto de Saul e do seu escudeiro como uma maneira honrosa de escapar a uma situação de derrota e de vergonha.

Em todo o caso, a Bíblia Sagrada, sem julgar moralmente os suicidas, refere apenas quatro declarados actos de aplicação da morte a si próprio, sendo três de personagens marcantes: Saul, Aitofel e Judas Iscariotes.

O vocábulo não é remoto, embora no latim se dissesse sui caedere. O termo foi criado ou usado pela primeira vez em 1737 por um historiador e jornalista, o abade francês Pierre Desfontaines, contemporâneo e antagonista de Voltaire, e baseia-se na junção das palavras sui (si mesmo) e caederes (acção de matar).

Remoto é, contudo, o acto em si. E no Velho Testamento o suicídio de Aitofel, apesar de antigo, dir-se-ia que já possui em si mesmo os contornos de um suicídio moderno.

Aitofel chega a casa, pondera sobre as impossibilidades de Absalão sair vencedor, arruma os seus papéis, guarda a sua componente de traição a David e enforca-se. Deixou uma nota de suicídio? Desconhece-se, embora as razões do seu acto limite estejam divulgadas em pormenor no livro bíblico de Samuel (II, 17,23).

 

UM TERMO SOCIAL QUE NÃO SE DESVINCULA DA FILOSOFIA

 

Se há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.Julgar se a vida merece ou não ser vivida”  -escreveu Albert Camus, in “O Mito de Sísifo”

 O suicídio é sempre um atentado contra o Ser. O filósofo Nietzsche chamou-lhe “morte voluntária”.  Com um significado de desespero e como uma linha de fronteira, entre o ser e a sua essência.

Certo poeta e dramaturgo marselhês, do século XX, recomendou mais a si próprio do que aos outros: «antes de me suicidar exijo que me assegurem a respeito do ser, eu gostaria de estar seguro a respeito da morte»  Esse escritor surrealista, Antonin Artaud, teve a coragem de escrever um livro invulgar em que acusa a sociedade de ter “suicidado” Van Gogh. Mesmo este, ao suicidar-se com 37 anos, escreveu uma mensagem (nota de suicídio) em que dizia: «A tristeza nunca vai embora».

Afigura-se sempre, do lado do observador social, que o suicida é aquele que procura uma saída. O primeiro rei israelita procurou-a. Tal foi também o caso-estudo da história da Literatura anglo-saxónica, no âmbito dos poetas-depressivos, com o suicídio de Sylvia Plath aos 30 anos, em 1963.

 

“Morrer

É uma arte, como outra coisa qualquer.

E eu executo-a excepcionalmente bem.”

(Sylvia Plath, no poema “Lady Lazarus”)

 

O grande mártir da teologia protestante Dietrich Bonhoeffer escreveu no seu livro «Tentação» que o «suicídio é o último acto do drama da tristeza» e apontou o «pecado da tristeza» como um desespero/ desesperatio.

 

 

SEM SAÍDA OU O “HUIS CLOS” DE SARTRE

Em qualquer caso de suicídio, que implique sempre a tomada de consciência do acto na linha de fronteira do desespero, que é «o desejo de nos desembaraçarmos do nosso eu», uma espécie de anseio por um repouso sem conflito, existe sempre a ideia de que se está a fugir da existência, salvo nos casos de suicidas com gravíssimas patologias mentais.

Tanto pensadores cristãos como Paul Tillich ou ateus como Jean-Paul Sartre falam da impossibilidade de fuga a nós próprios ou fugir de algo ou de «um quarto» sem saída. Deste último a conhecida peça «Huis Clos»( «Portas Fechadas»), agnóstica e existencialista, trata do sentimento do ser humano fechado com a sua culpa e a dos outros, numa espécie de quarto que é o «inferno» de Sartre, sem saída. As três personagens estão «mortas» e têm que suportar a convivência e a sua culpa, concluindo para si que o inferno são os outros. É uma peça literária da desesperança. No momento em que uma das personagens tenta matar a outra, é-lhe dito:«O que estás tu a fazer? Tu sabes muito bem que estamos mortas. Nada nos poderá voltar a matar, facas, veneno, cordas. Estamos mortas para sempre.» Naquele mundo / inferno fechado nem o suicídio seria possível.

 

O CONFLITO COM O PRÓPRIO SER, SEGUNDO TILLICH

Num acto suicida estão implícitas questões como: vida x morte, presença x ausência, e elas fazem do acto perpetrado um enigma. A morte natural, mesmo a por doença, não pode ser considerada um enigma, face à causa bíblica e ontológica da morte (o Pecado), ainda que se possa pensar que se morre sempre demasiado cedo ou demasiado tarde.

Mas o suicídio é uma pretensa fuga. Como uma forma de o homem se livrar de si mesmo, considera o teólogo protestante Paul Tillich, de resto como uma total impossibilidade. Porque é também uma auto-negação da vida. De acordo com Tillich é a Fé que dá coragem para existir apesar das aflições, problemas e tragédias que se abatam sobre o Ser, a coragem é essencial ao Ser.

Por isso mesmo o atentado do ser humano à sua existência entra na dimensão teológica e bíblica. Com esta perspectiva, as reacções ao suicídio, ao longo dos séculos, têm variado de cultura para cultura. Em muitas religiões, o acto é considerado pecado. Tratando-se de uma interpretação correcta, não é de estranhar que Agostinho de Hipona tenha hiperbolizado a exegese ao afirmar que os cristãos não podem cometer suicídio, pois este está também compreendido no mandamento «Não matarás» (Ex 20,13).

Porém, tal disputa em torno do suicídio é quase sempre relegada para o terreno do social e das patologias mentais.

Mas se a previsibilidade social deste atentado nem sempre está patente, existem hoje, sobretudo hoje numa sociedade mergulhada em depressões e falta de esperança, alegadamente sem saídas, alguns indicadores de risco:

Tentativa anterior ou fantasias de suicídio. Disponibilidade de meios para o suicídio. Ideia de suicídio abertamente falada. Preparação de um testamento. Luto pela perda de alguém próximo. História de suicídio na família. Pessimismo ou falta de esperança. Jovens suicidas.

E, sobretudo, é preciso que se atente para um fenómeno cada vez mais pressionante do homem e da mulher modernos, o que os especialistas consideram como Borderline. A Perturbação de Personalidade Limite (PPL) que produz um equívoco perigoso, a instabilidade estável, que leva a estados de auto-mutilação diversos que podem culminar com a concretização máxima do suicídio.

Normalmente é apresentada no humor, nos relacionamentos com os outros, na imagem que se tem de si mesmo, nos comportamentos mais diversos na vida familiar e profissional.

Apesar de uma Associação Internacional de Prevenção do Suicídio, que estuda e previne o mesmo, os números no mundo continuam assustadores – mais de 3000 por dia -, e, com certeza, desconhecidos os números daqueles que praticam a «deliberate self harm»( o que designa a intenção de suicídio, ou auto-lesão intencionada).

Dramaticamente entre os jovens ( dos 15 aos 24 anos) o suicídio é a terceira causa de morte, atrás dos acidentes, homicídios ou mesmo guerras. Segundo o INE, que há quase uma década já mostrava números preocupantes, 910 casos.

Face a estes e outros números que as estatísticas hoje evidenciem, finalmente, a tautologia da enfermidade humana: desespero desesperado pela incapacidade de ser, tem no Evangelho de Jesus Cristo o antídoto – o Amor de Deus pelo homem.

Mesmo no desespero contínua hoje válido o que afirmou Kierkegaard: «Quem desespera não pode morrer», isto é, desenvencilhar-se do Eu, mas levá-lo aos pés do Salvador Jesus Cristo.

                                                                                      

 © João Tomaz Parreira

UMA CERTA PARÁBOLA SOCIAL, TEOLÓGICA, COM ESCATOLOGIA

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“Ora, havia certo homem rico, (…) Havia também certo mendigo”  

Evangelho de Lucas

A parábola do “Rico e Lázaro” tem uma linguagem figurativa e, também, sobre uma dolorosa realidade social.

Uma leitura que resolva apenas circunscrever-se à letra, pode induzir-nos mesmo a pensar num princípio de luta de classes. Não é o espírito da parábola, mas, do ponto de vista humano, também não anda longe, porque o que o Senhor Jesus Cristo quis sublinhar e repreender foi a cobiça dos homens e a indiferença dos ricos pelo sofrimento dos pobres.

Usando duas personagens, nomeando uma e deixando incógnita outra (para não ferir identidades conhecidas?), a parábola resolve várias questões do pensamento humano social, teológico e, já agora, da própria escatologia que a parábola contém. E quando Jesus sobre a morte de Lázaro usa a expressão “ser levado pelos anjos”, revestiu poeticamente de beleza a indigência de Lázaro, os seus vestidos rôtos, o seu corpo, coberto na morte pelas mãos dos anjos, como o não foi em vida pelos homens.

No plano social

Na primeira parte da diégese (Lc 16:19-21), o essencial foi a ênfase que Cristo deu ao aspecto social, às relações humanas.

Lucas ao “transcrever”, na narrativa que surge depois de outra sobre assunto totalmente diverso, mas ainda assim no âmbito das críticas aos fariseus, usa uma literariedade para organizar a linguagem da diferença social entre um homem que vivia opulentamente e um pobre, coberto de chagas, que vivia à sua porta, no desprezo do lado de fora da escala social.

A profundidade da acusação de Cristo contra esse rico, e que Lucas deixa nas entrelinhas, é que o auxílio que essa mansão rica concedia ao pobre Lázaro seria apenas a impessoalidade das migalhas, migalhas sem rosto, mais nada. “E desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico”. A caridade sem face.

O nosso conhecimento dos fariseus, permite-nos situá-los como grupo ou seita que floresceu a partir do século II a.C., no tempo dos Macabeus. Muitos séculos antes, a Torah já regulamentava as boas relações humanas, a protecção para os fracos, o que os fariseus deveriam conhecer. Eram tão importantes as boas práticas sociais que até entre os primitivos cristãos a Didaqué (Instrução)  prescrevia: “Não serás cobiçoso nem rapace, nem hipócrita, nem soberbo.” (2,6)

O próprio evangelista Lucas, escreveu que os fariseus “eram avarentos” (16:14)

No plano teológico e escatológico

Jesus Cristo sabia que esta parábola faria silêncios profundos, ainda que não admitidos pelos ouvintes. Mesmo com linguagem figurativa, a teologia não deixaria de abalar os fariseus. Confrontou-os com o devido amor ao próximo, independentemente da sua condição social, agora confrontá-los-ia com Abraão, com o seio de Abraão e com o inferno.

Ora, qualquer fariseu dizia-se descendente de Abraão, reivindicava uma relação de mais de um milénio que, apesar do tempo, autorizava qualquer fariseu a chamar pai ao homem de Ur da Caldeia, o homem a quem Deus chamou Amigo ( Isaías, 41:8).

Colocar o rico no Hades é teologia pura, no que concerne aos resultados do Pecado e da relação do homem com Deus, até na pessoa do próximo, seja-se rico ou pobre. Jesus Cristo afirmou, deitando borda fora toda a pretensa caridadezinha social, com o seu ranço institucional: “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mt 22:39)

Num simples volume de teologia sistemática, como o antigo de Myer Pearlman e.g., a morte é uma consequência estudada no capítulo dos Acontecimentos Finais, e o inferno como lugar de extremo sofrimento, de recordações, remorsos e desejos insatisfeitos. De tudo isso, falou Jesus Cristo nesta parábola, usando a narrativa e a dialogia.

É do conhecimento geral do leitor estudioso da Bíblia, que Lucas tinha cultura linguística e apetência literária no modo como narrava, a estrutura da sua linguagem era composta de elementos literários. Na enunciação do que Jesus Cristo disse, o estilo do discurso relatado – como se chama em linguística-, a situação dos protagonistas é emotiva. A chamada dialogia é perfeita e emocional na parte do diálogo com que Jesus Cristo traz ao temporal o conflito meta-histórico, que ocorre na eternidade, entre o rico e Abraão.

Com efeito, a parábola do Rico e Lázaro é das mais profundamente didácticas e poéticas, no sentido da beleza trágica, que possuímos no Novo Testamento.

Por alguma profunda razão da sensibilidade estética de Lucas, esta parábola só a encontramos no seu evangelho.

Esta belíssima parábola é um compêndio de didáctica, é um quadro, é um poema, que em meia dúzia de linhas expressionistas, embeleza o pobre Lázaro. Aquele que tinha o corpo coberto de chagas, mas foi levado pelas mãos dos anjos.

                                                                                         © João Tomaz Parreira