“O homem no cruzamento das tradições religiosas: convergência ou dispersão”
Co-participação na conferência realizada pela Universidade Autónoma de Lisboa – UAL, a 13 de novembro de 2014, integrada no Ciclo de Conferências às Quintas
No cruzamento das tradições religiosas emerge um Homem que é muito mais do que Homem, tendo-se apresentado a Si mesmo como divino, foi sendo reconhecido assim pelos Seus seguidores e ao longo da história tem despoletado as mais diferentes reações. Convergência na dispersão e dispersão na convergência.
Parto do princípio de que o homem é na sua essência religioso, ou seja, ele não se define e se compreende nos limites de si próprio ou dos outros enquanto humanidade. Ele se transcende no eco de uma origem e de um fim que estão muito para lá dele mesmo. Deus está presente no homem como apelo qualquer que seja a forma pela qual ele o defina ou compreenda, ou não o consiga efetivamente definir ou compreender. O homem pergunta-se sobre as suas origens, sobre a Causa que está por detrás da sua pessoa, pergunta-se, tem consciência de si e da sua existência, interroga-se sobre o seu desígnio e propósito, porque existo e porque estou aqui, onde estou e para onde eu vou. É como se o homem se tivesse afastado de casa e esteja à procura e a tentar descobrir o caminho de volta. Múltiplas são as respostas que têm surgido a este propósito e na diversidade que elas nos propõem existe um ponto comum, um ponto de convergência.
Neste emaranhado de perguntas e de respostas, de suspeitas e de propostas, existe não apenas o movimento do homem em relação a si mesmo e ao que o transcende e no qual ele encontrará a sua identidade e essência, mas também o mover de Deus em direção ao homem. Este mover pode ser percebido na própria caminhada humana, nas suas dúvidas e interrogações. O sábio do Antigo Testamento já descrevia esta ideia no livro do Eclesiastes nestes termos: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até ao fim.” (3:11). O apóstolo Paulo no areópago ateniense, perante estoicos e epicureus, instado a explicar a estranha doutrina que proclamava, pegou precisamente nesta linha de raciocínio, e servindo-se da multiplicidade de deuses que encontrou ao visitar a cidade, argumentou nestes termos: “Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Pois esse que adorais sem conhecer, é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo o mais; de um só fez toda raça humana para habitar sobre a terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós. Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dos mortos.” (Atos 17:22-31)
No cruzamento das tradições na Grécia de há dois mil anos, na dispersão visível da multiplicidade de deuses e de filosofias, o apóstolo Paulo encontrou um ponto de convergência – o Deus pessoal criador e sustentador, que se dá a conhecer através de um varão, na Sua morte e ressurreição e pelo qual haverá de julgar o mundo.
Passados que são dois mil anos as tradições religiosas continuam a sugerir um ponto convergente na sua dispersão, mas essa convergência não se confina a liturgias particulares, ou a valores e princípios éticos. Penso que é possível encontrar no cruzamento das várias tradições religiosas princípios que são essenciais à convivência e à sobrevivência do homem, num mundo global cada vez mais fragmentado, em que os conflitos mesclados por leituras e interpretações religiosas que inflamam ódios mesmo fratricidas, empurram a humanidade para a beira do abismo. Precisamos de valorizar a paz, o amor, a liberdade, os direitos do homem. Mas este objetivo tem que ser conseguido através do respeito das divergências e dispersões.
Se nas diversas tradições religiosas e em cada homem podemos vislumbrar todos esses impulsos para a transcendência, parece-nos também evidente que sem Deus o homem nunca O poderá encontrar. Afinal de contas penso que O procuramos apenas como resposta a sermos procurados. É Ele que nos procura, e só O encontramos porque Ele veio ao nosso encontro. É neste emaranhado de dispersões que emerge a figura de Jesus Cristo que se apresenta e é apresentado pelos Seus seguidores como Deus que vem ao nosso encontro e no qual nós podemos ver o rosto de Deus. Por exemplo o apóstolo João na introdução do evangelho que escreveu declara: “Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigénito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.” (João 1:18), e num diálogo muito sugestivo com os discípulos e em resposta a um deles o próprio Cristo declara: “Felipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim, vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?” (João 14:9)
Jesus é o ponto de convergência, o alfa e o ómega da linguagem da comunicação, do vocabulário e da revelação divina.
Permitam-me destacar alguns aspetos que considero hoje em dia, como o foram sempre através da história do homem, cruciais, sem escamotear a realidade de que ao longo dessa mesma história e em Seu nome foram perpetrados por muitos que se apresentaram como Seus seguidores as maiores barbaridades, embora Ele mesmo já antecipadamente tivesse avisado que tal viria a suceder.
Quando destaco Jesus Cristo isto não representa nenhuma supremacia de uma determinada tradição religiosa, a supremacia, singularidade e superioridade é d’Ele única e exclusivamente, e sendo d’Ele é feita em termos que hoje nos são imprescindíveis para lidarmos com o que nos quer destruir.
Jesus apresenta-se como mestre manso e humilde, dois atributos particularmente interessantes que agregou à natureza divina. “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mateus 11:28-30)
Jesus recusa os modelos dos grandes e poderosos que tiram proveito dos menos favorecidos e que exercem um poder discricionário e discriminatório, aproveitando um momento em que dois dos seus discípulos se apresentam como candidatos aos lugares de destaque à sua direita e esquerda, perspetivando a soberania divina à semelhança do que conheciam da sua realidade cultural e possivelmente do império romano sob o qual se encontravam. Jesus não podia ter sido mais taxativo: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Mateus 20:25-28)
Nesta mesma linha de conduta e de pensamento, em sintonia absoluta com a sua natureza e essência, na derradeira ceia antes da Sua morte, dispôs-se a um ato simbólico de profundas implicações culturais, relacionais e vivenciais, lavando os pés aos discípulos, tarefa que estava destinada aos escravos. Depois da estupefação e da reação de indisponibilidade de Pedro, ultrapassada pela argumentação do Mestre, Ele conclui neste termos: “Vós me chamais o Mestre e o Senhor, e dizeis bem; porque eu o sou. Ora se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou. Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes.” (João 13:13-16)
O perdão é outra das ênfases que encontramos no ensino e na atitude de Jesus no momento mais crucial da sua existência terrena. Na oração conhecida por Pai nosso ensina a orar nestes termos: “(…) e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; (…)” (Mateus 6:12). Quando um dos discípulos procurou colocar um limite a esta atitude de perdão foi esta a resposta que recebeu: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.” (Mateus 18:22). Face à provocação insistente de um grupo de religiosos fanáticos e do modo de proceder em relação a uma mulher adúltera tendo em vista a lei de Moisés, lançou o seguinte desafio: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra.” E à mulher tolhida pela vergonha, pela culpa e pelo medo, depois de todos terem abandonado o lugar reconhecendo que não estavam em condições de executar a condenação, diz: “Nem eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais.” (João 8:7,11) Aquando do momento da sua própria crucificação exclama: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23:34)
O amor como síntese de toda a lei e de todos os mandamentos é a questão levantada em relação a uma interrogação de um advogado da lei. “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Lucas 10:27) Em dificuldades para conseguir identificar quem seria o seu próximo, Jesus conta a célebre parábola do bom samaritano, mostrando que o próximo não é o que pertence à nossa confissão religiosa, à nossa casta, à nossa classe social, à nossa raça ou etnia, à nossa nação ou ao nosso clube privado, mas todos os de quem tomamos a iniciativa de nos aproximarmos. Usa para tal um samaritano que era o indivíduo menos considerado e mais discriminado e rejeitado, depois de referir um sacerdote e um levita que perante a vítima dos assaltantes, passam de largo. Provocador ou muito mais do que isso. Há dois mil anos. Com a mesma intensidade nos dias de hoje. Ao intérprete da lei ordena que faça como o samaritano pelo qual não deveria ter uma grande estima: “Vai, e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:37)
Um amor que é entendido de modo prático fazendo aos outros do mesmo modo como queremos que nos façam, no sentido positivo e não negativo (Lucas 6:31), e que Jesus coloca de modo singelo em relação a Si o que fazemos com os menos favorecidos: “Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; preso e fostes ver-me.” (Mateus 25:35,36). Alertou igualmente “Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?” (Lucas 6:46)
Todos estes valores são parte de uma convergência necessária na convivência humana e possivelmente sintetizada pelo homem no cruzamento das várias tradições religiosas. Mas o que a mensagem de Jesus, e a própria vida de Jesus concentra vai muito para além, e não há formulação do evangelho no meu entender que a possa escamotear, e se porventura tal acontecer, nega-se a essência do mesmo.
Num encontro pessoal com um mestre religioso que apresenta uma interessante síntese pessoal sobre a figura do nazareno, este de uma forma franca, direta e frontal, afirma-lhe perentoriamente: “Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” (João 3:3). É aqui que reside no meu entender a novidade por excelência da pessoa e da mensagem de Cristo. Um nascimento da água e do Espírito, um novo começo, uma nova pessoa, um novo homem, uma nova condição, uma outra natureza, uma outra realidade vivida nas possibilidades divinas que vão além dos bisturis humanos e das regras que se possam formular. Mudados por dentro, para viver de forma diferente em todas as dimensões da vida humana.
A vida, morte, ressurreição e promessa de segunda vinda de Jesus, convergem para esta proposta. A Sua ressurreição histórica e literal, sem a qual a fé será vã, inútil no dizer do apóstolo Paulo (1º Coríntios 15:17) diz-nos que a morte não é o fim, que “os sofrimentos do tempo presente não são para compara com a glória porvir a ser revelada em nós” (Romanos 8:18), lançando uma nova luz sobre o nosso sofrimento a partir de um Deus que sabe o que é sofrer, num mistério que vai além do nosso entendimento. A Sua crucificação provando a morte com e pelo homem é a pedra de toque, é apresentada em todo o Novo Testamento como redentora, resgatadora, expiatória, justificadora e reconciliadora. Daí uma palavra singular no contexto do evangelho e que não posso deixar de aqui referir num tempo tão carenciado dela, e de um homem que dela precisa como de pão para a boca da mesma – GRAÇA! Receber de Deus não por mérito ou virtude, mas por favor que nunca seremos capazes de merecer, pagar, ou produzir por nós mesmos. No dizer do percursor João Baptista, no evangelho de João “Porque todos temos recebido da sua plenitude, e graça sobre graça. Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.” (João 1:17). A religião como comércio, como instrumento do medo e da culpa, da manipulação e da opressão, caem perante a graça divina – sem dinheiro e sem preço a realizar a profecia de Isaías entre 600 e 700 anos antes. Quando a GRAÇA é percebida, acolhida e experimentada não pode haver lugar à intolerância, à perseguição e à morte. A GRAÇA acolhe a todos mesmo que discordemos em quase tudo, no essencial ou no periférico. A GRAÇA não dissimula as convicções nem as dilui, não nega a VERDADE, mas articula-a com o AMOR.
É por isso que um dos títulos que mais me impressiona nas acusações que Lhe foram dirigidas há dois mil anos, é a de “(…) amigo de publicanos e pecadores (…)” (Mateus 11:19) E simultaneamente as suas invetivas para com os religiosos que presumiam representar o Deus que era o Seu próprio Pai, de quem é o Filho unigénito e primogénito. De entre os vários epítetos cito esta referência: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos, e de toda imundícia.” (Mateus 23:27)
Pode ser que não vejamos muito do que encontramos em Jesus Cristo nas grandes instituições que trazem um rótulo de cristão. Costumo dizer que se Jesus voltasse hoje à terra porventura não seria cristão, e mais ainda, seria recusado pelos que a si próprios se designam de cristãos. Mas existem muitas comunidades espalhadas pelo mundo inteiro que vivem tendo como foco estes princípios e Aquele que os torna possíveis. Esta é a convergência de vida de que precisamos. Jesus chama pessoas, indivíduos que por sua vez formam grupos, que influenciam mais ou menos sociedades, estados, nações, culturas e mentalidades. Por isso é possível ser um seguidor de Jesus sem ser “cristão”, e muitos cristãos estão longe se ser seguidores de Jesus.
A descrição que o Novo Testamento apresenta da Igreja dos primórdios mostra como isso foi concretizado e pode continuar a acontecer mesmo com outras formas diferentes de manifestação e expressão: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e das orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.” (Atos 2:42-47)
A oração que mais me interpelou nos últimos dias lia no livro “O Chamado” de Os Guiness (pp. 113,114), de um judeu na Casa Branca, que foi presidente do banco central americano nos anos 70 e embaixador na Alemanha Ocidental. “Senhor, peço que leve os judeus a conhecer a Jesus Cristo. Oro para que os muçulmanos venham a conhecer Jesus Cristo. Finalmente, Senhor, peço que traga os cristãos para conhecer Jesus Cristo. Amém.” (Arthur F. Burns)
Samuel R. Pinheiro
13 de novembro 2014
O assunto do pluralismo religioso é bastante pertinente face à cultura vigente. Existe uma boa bibliografia em língua portuguesa que recomendamos como é o caso dos seguintes livros:
“Cristo Entre Outros Deuses”, Erwin E. Lutzer, CPAD.
“A Supremacia de Cristo em um Mundo Pós-Moderno”, John Piper & Justin Taylor, CPAD.
“A Supremacia de Cristo – conhecendo o único caminho”, Ajith Fernando, Shedd Publicações.
“Verdade Absoluta – libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural”, Nancy Pearcey, CPAD.
“O Deus Amordaçado – o cristianismo confronta o pluralismo”, D. A. Carson, Shedd Publicações.
“Quem é Jesus? – contrapondo Sua verdade à falsa espiritualidade dos dias atuais”, Ravi Zacharias, CPAD.
“Pós-modernismo – um guia para entender a filosofia do nosso tempo”, Stanley J. Grenz, Edições Vida Nova.
Uma Ortodoxia Generosa”, Brian McLaren, Editora Palavra, Brasília, 2007.
“O Jesus Que Eu Nunca Conheci”, Philip Yancey, Editora Vida.