O ser humano não existe sem comunicar. Não consegue subsistir sem comunidade. Simplesmente, uma das características dele tem a ver com interação. O Homem não é uma ilha isolada em si mesmo, para parafrasear John Donne. Família, emprego, vizinhança, tudo isto são exemplos simples da necessidade primária (que se encontra praticamente ao nível da necessidade de higiene e de alimentação, por exemplo) do Homem viver em comunidade com o seu semelhante. Cada vez que existe um corte nessa ligação, existe um deteriorar do interior de cada pessoa. Não fomos feitos para ser focos isolados, mas para vivermos como brasas numa fogueira.
Toda a experiência de vida no séc. XXI e na sociedade pós-ano 2000 tende a apontar para algo: isolamento. Somos alimentados com produtos que regulam, fecundam e vitaminam o nosso ego. A auto-satisfação ou a auto-justificação passaram a ser processos regulares no nosso dia a dia. A tecnologia veio tornar mais palpável o imaginário, ampliando os mecanismos do egocentrismo e da solidão, dando-lhes um conforto e espaço próprio. Nós, os que vivemos numa sociedade que já se pode apelidar de híper-pós-moderna, somos engolidos diariamente por uma onda de dependência tecnológica. Uma dependência já alvo de tratamento em hospitais, que acaba por sufocar quem cede a ela. Torna o ser humano alvo de uma nova forma de eremitismo: o ciber-social.
Se antes um eremita se centrava na meditação e no seu relacionamento pessoal com Deus, o eremita do séc. XXI centra-se no isolamento físico e emocional, mas não na ausência de interação com o outro. Escolhe afastar-se, porque “aquilo que os olhos não vêm, o coração não sente”. Este fenómeno gerou por outro lado, aquilo a que podemos chamar de slacktivism ou activismo de sofá. A luta contra as desigualdades e injustiças deixou de se fazer nas ruas. Comícios e manifestações foram trocados por raids em murais ou partilhas online. E no entanto, com o aumento da exposição, que semiólogo e autor Umberto Eco tão bem critica (a par de Andrew Keen, autor e empreendedor britânico), perdeu-se a coragem e o conteúdo demonstrado por Martin Luther King ou Joan Baez.
Com efeito, por ignorância ou por vontade própria, assumimos uma atitude ao estilo de Caim. Deus pergunta-nos pelo amor ao próximo, aponta-nos para o Bom Samaritano e nós, cultura auto-suficiente, respondemos que não somos guardas dos nossos irmãos. E sentimos ciúme e inveja, não do que eles oferecem a Deus, mas do pouco que possam ter e nós não tenhamos. Deixamos que o nosso afecto pelo nossos semelhante seja toldado pelo egoísmo com que defendemos ideologias, posses, estilos de vida. Vivemos vidas plenas de obsessão em adquirir, parecer, estar e experimentar tudo o que seja a última moda. Mas a par de tudo isso, continua aquilo que é a nova moda, o isolamento. Não para reflexão, nem para desintoxicação, mas como modo de vida. Este auto-consumo tornou o super-homem de Nietzsche num ser fraco e amoral. Condiciona o ser humano a uma vida de pressão, de decadência da condição humana e de maior perversidade.
Nem mesmo o filósofo alemão desejava um tamanho isolamento para o Homem. Com tudo isto, a imagem e semelhança de Deus são corrompidas e invertidas. O Homem cria deuses à sua imagem, tornando-se em ídolos que não falam, não ouvem, não agem, mas que o controlam e geram nele dependência. E toda uma nova casta se levantam, ao estilo dos baalins do Carmelo. Mutilam os seus corpos em prol de maiores ganhos juntos desse deus. Rejubilam e em êxtase entregam o seu louvor à fortuna da mitologia grega.
O Homem corrompe-se e deixa-se corromper. Deixa de sentir e de fazer sentir. Deixa de chorar os mortos e as dores do próximo, porque deixa de sentir e abraçar o próximo. Esquece o amor e a reverência, o cuidado com órfãos, viúvas, estrangeiros e doentes. Só valida esse cuidado se o promover socialmente, mas sempre sem as cadeias da interação pessoal.
É deste tipo de perigo que Cristo nos veio libertar. Da miséria da auto-suficiência e da auto-justificação. Da tentativa falhada de o Homem se equivaler a Deus. E da sua consequente necessidade de ser restaurado ao estado primordial. O Éden é o local do nascimento, do firmar de uma união entre Criador e criatura. E na Cruz, Jesus instaura uma espécie de novo Éden até à Sua vinda. Criador e criatura são novamente unidos num pacto na noite anterior, simbolizado com pão e vinho, oficializado com o derramar de sangue inocente. Este meio Éden, um jardim intermediário, onde já se goza parte do Reino mas ainda não é totalmente visível ou experimentável. Uma espécie de Jerusalém em reconstrução pela mão de Neemias. Um local onde somos chamados a trabalhar, uma seara a ser ceifada, mas que também deve ser cuidada e nutrida.
Em Jesus, o ser humano é levado à presença pessoal de um Deus que chora, que ri, que sofre, que se alegra. Um Deus de amor, justiça, graça e verdade. Um Deus comunitário, que alcança uma pessoa, uma família, uma tribo, uma nação, o mundo.
Em Cristo, não existe isolamento mas comunhão. Não existem corações frios e mortos, mas vivos e apaixonados. As mãos e os braços estão abertos, não existe outra dependência que não d’Ele. Tudo é virado do avesso, como numa aversão à crise de identidade do Homem. Passamos a ser chamados Filhos do Rei e não Escravos do Império, como tão bem sublinhou o teólogo britânico John Stott.
Em Emanuel, Deus no nosso meio, não vivemos mais sós, mas sabemos que ainda que os mais próximos nos desamparem, temos a Sua segurança, presença e amor.
Ricardo Jorge Mendes Rosa