O HOMEM DE VIKTOR FRANKL E DE PRIMO LEVI

O HOMEM DE VIKTOR FRANKL E DE PRIMO LEVI

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© João Tomaz Parreira
O homem que é fundido na massa, que num campo de concentração não deveria dar nas vistas dos guardas SS, não sobressair em nada, tornar-se apenas num incógnito para tentar sobreviver algum tempo, é a temática de dois livros coincidentes.

“Se Isto é Um Homem”, de Primo Levi, e, de Viktor Frankl, “Um psicólogo no campo de concentração”.

Não há grandes mudanças nem novidades nas análises psicológicas dos deportados e encarcerados nos campos de concentração nazis de Auschwitz-Birkenau que o psicólogo Victor Frankl e o escritor e poeta Primo Levi fizeram, a partir do mesmo destino nesses campos, porque eram judeus.

O elemento comum que já a filósofa judia Hanna Arendt identificara, é a despersonalização dos indivíduos, o tornar os judeus, sobretudo estes, matéria descartável, abaixo de sub-humanos se cabe aqui o pleonasmo.

Um dos aspectos que Viktor Frankl evidencia no seu livro, no que concerne à despersonalização do individuo, é, por exemplo, o facto da nudez. É a primeira realidade dos prisioneiros que chegavam ao campo e antes de entrarem para um suposto duche nas câmaras de gás, o que significava não apenas “o não ter nada no corpo”, mas também o homem e a mulher intuírem ou terem mesmo a consciência de que “possuíamos apenas a nossa existência literalmente nua”.

Vão no mesmo sentido as palavras de Primo Levi, no que diz respeito à consciência de que perante os carrascos já não se tem nem corpo nem alma, podendo dizer-se o mesmo total vazio dos algozes: “Aqui recebemos as primeiras pancadas: e o facto foi tão novo e insensato que não sentimos dor, nem no corpo nem na alma. Só um profundo espanto: como se pode bater num homem sem raiva?”

Na contundente narrativa de Levi, lemos do completo despojamento de personalidade do prisioneiro judeu nos primeiros momentos entre a aglomeração num gueto, a deportação, a chegada ao destino, o despojamento da individualidade e do pensar: “Soubéramos, com alívio, do nosso destino. Auschwitz: um nome sem qualquer significado, naquela altura e para nós; mas certamente devia corresponder a um lugar desta Terra.”

Do outro lado, da parte dos executores do maléfico plano de Eichmann, a chamada Solução Final que deveria extirpar a judiaria europeia, a própria despersonalização era evidente, já nem seria ideológica, era apenas a prossecução do Mal. Quantos mais “números” de uma raça tido como inferior e sem direito a existir eliminassem, tanto melhor. Nenhum dos guardas dos campos de concentração nazis era um burocrata, era tão só manobrador de uma maquinaria de morte, limitava -se a cumprir ordens, sim, mas tinha com certeza prazer nos sofrimentos que estava a infligir aos prisioneiros judeus e não apenas a estes? Os guardas e os oficiais SS estavam presentes e eram os agentes do Mal, ao contrário da banalidade entrevista na atitude de Adolfo Eichmann, que foi depois julgado em Jerusalém em 1962 e enforcado. Eram apenas monstros.

© João Tomaz Parreira

OS CÂNTICOS DOS DEGRAUS: O CLIMAX DE UMA ESTRUTURA POÉTICA

OS CÂNTICOS DOS DEGRAUS: O CLIMAX DE UMA ESTRUTURA POÉTICA

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© João Tomaz Parreira

Os “Cânticos dos Degraus”, ou Salmos de peregrinação, fazem parte do Saltério como uma das chamadas colectâneas menores. São os salmos das ascensões, das romagens, ou da procissão ao Santuário (120-134).

O código do uso destes salmos, o seu sentido desde o destinador( os autores) para o destinatário, estava na aplicação específica de cada um desses escritos, eram usados como hinos litúrgicos, porções das Escrituras que davam alento e traduziam uma experiência do hebreu, particular ou colectiva, com Yahweh. Foram elaborados a partir do Eu poético, o elemento individual, e do Nós, o elemento comunitário, o poeta enquanto indivíduo e enquanto povo, assumindo as suas dificuldades e as suas acções de graças.

Com as particularidades do discurso poético da poesia hebraica bíblica ( e somente esta era conhecida), desde os versos aos paralelismos e ao não uso da rima, não dispensando porém o ritmo do verso medido, toda a estrutura da linguagem acompanhava, dir-se-ia, o movimento ascensional que os Cânticos dos Degraus definiam e propunham.

Estes salmos perfeitos em sua beleza clássica não precisaram de ser longos, embora as ascensões ou as peregrinações fossem, elas mesmas eventualmente longas e por caminhos imperfeitos e a rasarem os abismos.

A ideia senão mesmo a imagem formal de cada um desses 15 salmos é uma subida, o discurso poético vai subindo de tom até um clímax final, quer fonética quer semanticamente.  Como se cada um partisse de baixo e fosse ascendendo em emocionalidade até um lugar alto.

O termo clímax significa um momento de maior intensidade na acção. Todos os quinze salmos dos Degraus traduzem-se numa acção, não são apenas salmos contemplativos ou de louvor estático. Como poesia, mas, também, como uma oração, os Cânticos de Romagem são uma conversa inteligente com Deus.

De todo o conjunto há três salmos que são paradigmáticos neste aspecto, os salmos 121,122 e 123, embora todos os restantes mostrem o mesmo padrão ascensional, os montes, o templo, a alegria, o olhar colocado em Deus, o escape quando os pés vacilam, o dia e a noite como metonímias poéticas do sol e da lua, e outras comparações metafóricas.

Escolhemo-los pelo seu forte impacto inteligível desde a primeira leitura. Sobre eles nos deteremos, com brevidade, como sistemas significantes (a linguagem poética, a antevisão das dificuldades, o sonho do regozijo ao chegar à presença divina  na Casa do Senhor). Cada palavra como que acompanha a ascensão, marca o ritmo da subida.

Salmo 121
Este salmo não introduz, como outros, um imperativo verbal, introduz antes uma inevitabilidade do salmista, o olhar para fora, para o aparente problema: os montes. E uma pergunta que pode indiciar perplexidade, é, normalmente, da dúvida que partimos para uma certeza. O primeiro verso, onde se averigua a dificuldade, e a questão colocada, não rompem com a Aliança com Jeová, e o poeta que questiona, ele mesmo dá a resposta que vem do seu coração. Ele olha para dentro de si próprio e aí estão todas as respostas: a identidade de onde provem o socorro e as capacidades inefáveis de quem socorre. Desde aqui até ao verso 8 há um claro clímax, uma ascensão, que culmina: “O Senhor guardará a tua entrada / e a tua saída, desde agora e para sempre”. A dúvida inicial transforma-se numa afirmação de certeza. O peregrino sabe agora  o favor divino com que pode contar.

Do ponto de vista da chamada psicologia social ligada à semiologia, este salmo está carregado de sinais ( do grego sémêion), e cada um deles desde os montes, o sol e a lua, os pés que podem resvalar, o subentendido abismo, fornecem todo o pano de fundo para a compreensão do poema como um lenitivo para uma subida que se mostra árdua, mas com final feliz.

Salmo 122

No primeiro verso deste Salmo, parece que o clímax está no início. Reproduz o contentamento espiritual, a emoção palpável de David, que nos diz numa versão comum da Bíblia Para Todos (BPT): “ Que alegria quando me disseram vamos ao templo do Senhor”. É um salmo de peregrinação sobre o Templo. Antevê, no princípio da subida, a majestosa visão da Casa do Senhor, em Jerusalém.
Curiosamente, o salmo 122 introduz no saltério uma percepção de movimento: “Já estamos mesmo a chegar às tuas portas, Jerusalém”.

De acordo com Hermann Gunkel (Alemanha, 1862-1932), o salmo 122 é um dos mais paradigmáticos no que concerne à peregrinação ou à romagem. Esse estudioso das civilizações do Egipto e da Mesopotâmia e das suas ligações com os Salmos, enquanto poesia hebraica, “recapturou o valor dos salmos”, não apenas como literatura, mas sobretudo como parte da Bíblia Sagrada, designadamente a Bíblia Hebraica ou Tanakh, integrando os chamados “Escritos” ou Kethuvim

É um salmo onde de igual modo se prescreve uma obrigação: “É lá que vão as tribos, as tribos do Senhor, para cumprir a obrigação de Israel.”.

Salmo 123

Este é um dos mais pequenos cânticos na sua estrutura formal linguística, nas versões das nossas Bíblias tem apenas 4 versos. Neles se salienta, apesar da sua brevidade, o olhar do peregrino e a sua dependência dos favores divinos.

Não tem propriamente um clímax observável na estrutura fonética nem na sintaxe. Termina mesmo de um modo que dir-se-ia desalentador, do ponto de vista social e religioso, dando a entender que o autor e todos quantos o acompanham na romagem, “estão completamente saturados com as injúrias dos arrogantes”. Aqueles que à margem dos caminhos da subida vão lançando impropérios desencorajadores aos peregrinos? #