A TEOLOGIA DA CRUZ
1ª Parte
1ª Parte
Dr. Jorge Pinheiro
Falar da teologia da cruz implica ter de falar necessariamente de duas outras entidades para que este tema seja contextualizado e assim entendida a sua profundidade. Essas duas entidades são Deus e o Homem.
De facto, tendo em conta que, na visão cristã, a teologia da cruz é essencial, sendo o seu suporte e coluna mestre, ela só faz sentido tendo como pano de fundo não apenas essas duas entidades atrás referidas, mas a relação existente entre ambas, na medida em que a Cruz surge como o caminho que cimenta essa relação. Melhor ainda, a Cruz é o próprio cimento dessa relação.
Convenhamos que, em termos humanos, não é fácil falar de Deus. Como seres relatados estamos destinados a conhecer directamente apenas aquilo a que os nossos sentidos têm acesso. Essa, de resto, é a base de todo o conhecimento humano. É assim que se move toda a ciência. Qualquer ciência, seja ela física, humana ou formal, tem como objecto de estudo uma realidade ou ser acessível aos nossos sentidos e sobre o qual se podem realizar experiências, para comprovar a sua realidade e as conclusões a que se chegou do seu estudo. É verdade que cada ciência, de acordo com a sua natureza, segue métodos específicos que, em alguns casos, não permitem a experimentação directa (como é o caso das chamadas ciências humanas), mas todas elas têm como comum a necessidade de um objecto sensível de estudo.
Naturalmente, também, toda a ciência é, por princípio, incompleta, na medida em que não consegue esgotar o conhecimento pleno do seu objecto de estudo por se encontrar em permanente estado de evolução resultante da dialéctica estabelecida com esse objecto. Por isso, a cada momento se elaboram novas teorias baseadas em pressupostos, hipóteses ou descobertas entretanto adquiridos as quais muitas vezes contradizem ou melhoram uma perspectiva anterior. Sem nos aventurarmos na demonstração de que toda a ciência é influenciada pela ideologia do poder político, económico ou social em que se desenvolve, podemos afirmar que a ciência acaba sempre por estar em evolução não podendo por isso arrogar-se à palavra final do conhecimento, dada essa característica transitória. Mas também é verdade que na característica sincrónica do viver humano, as conquistas da ciência e o conhecimento que ela adquire surgem como absolutos porque, a quem vive sincronicamente falta a perspectiva diacrónica. Isto é, enquanto seres humanos só podemos estabelecer comparações factuais com o passado e apenas pressuposições, hipotéticas portanto, em relação ao futuro. Por isso, o momento (relativo) em que se vive tende a surgir para quem viva apenas sincronicamente como absoluto e adquirido. Salomão, ao reflectir sobre a existência humana e a sua contingência, declarava que tudo é vaidade (1), querendo com isso dizer que tudo neste mundo é transitório e não absoluto ou definitivo. Esta mesma ideia acaba por ser elaborada por João ao declarar que “o mundo passa” (2).
Ora, falar de Deus no pressuposto de Ele ser o objecto de estudo de uma ciência experimental é algo que surge como impossível, uma vez que, como Ser Absoluto, não sujeito às contingências e limitações do relativo, Deus não é directamente captável pelos sentidos humanos sob o risco de, sendo-o, deixar de ser Deus por perder a sua natureza absoluta. É que, enquanto o Absoluto pode abarcar o relativo, o relativo apenas pode tentar abarcar o relativo e, do Absoluto, ter somente um vislumbre hipotético.
Assim, toda e qualquer ideia que o homem possa ter de Deus será sempre aproximada porque lhe falta a capacidade de exercer algum tipo de controlo ou domínio sobre o seu objecto de estudo. No entanto, apesar das limitações que cercam a abordagem científica de Deus, há sempre alguns aspectos que se podem tomar como adquiridos. Naturalmente, entendendo Deus como ser absoluto, pode imaginar-se, por exemplo, que todos os Seus atributos sejam também absolutos. A partir daqui, no entanto, pouco mais se pode avançar, como seja o perfeito carácter de Deus e as Suas intenções. Neste aspecto, tudo quanto se possa elaborar a esse respeito terá de ficar pelo campo das hipóteses, uma vez que não há possibilidade de as confirmar ou infirmar. De resto, é a essa conclusão que chega Paulo, ao declarar: “Quem compreendeu o intento do Senhor?” (3), reflectindo a confissão de Job “Bem sei que tudo podes e nenhum dos Teus pensamentos pode ser impedido” (4).
Dada a natureza absoluta de Deus, ao homem, como ser relativo, faltam as qualidades e capacidades para O descrever e aos Seus atributos de forma rigorosa, pelo que toda a descrição ou referência a tudo quanto importa a Deus peca por defeito. Daí recorrer-se a uma abordagem antropomórfica do Ser Absoluto. Disso são reflexo as diversas expressões que o crente utiliza para se referir à protecção ou ao amor de Deus, para citar apenas duas das Suas características. Todos conhecem os cânticos “Segura na mão de Deus” e “Sob Suas asas refúgio eu tenho”. No mesmo andamento, é costume o crente referir-se ao trono ou à habitação de Deus. Sendo Deus absoluto e sendo o espaço e o tempo realidades do relativo, então Deus não está sujeito às limitações do relativo, razão pela qual, em bom rigor, é incorrecto falar-se de lugar em relação a Deus. Essa mesma metodologia antropomórfica vamos encontrar logo em Génesis quando, no seguimento da criação de Adão e Eva, o texto bíblico se refere a Deus a passear no jardim, pela viração do dia (5). Ou, ao referir-se à ira de Deus, encontramos por diversas vezes a expressão “arrependeu-se Deus” como no episódio do dilúvio (6). Os exemplos são inúmeros. É evidente que, em alguns dos exemplos citados, se pode dizer que o texto recorre a metáforas, mas mesmo sendo metáforas, elas surgem com um carácter antropomórfico.
Chegados a este ponto, poderemos, justamente, perguntar: “Então, é impossível conhecer Deus? É impossível saber como Ele de facto é e quais os Seus intentos e propósitos?”
Antes de responder a essa pergunta, é fundamental perceber que Deus, como ser inominável, não pode ser demonstrado. E ainda bem que assim é, porque no momento em que se demonstrasse física e cientificamente a Sua existência, Deus deixaria de ser Deus porque ao ser percebido pelo ser relativo que é o homem, perderia a Sua natureza e essência absolutas. Isto é, Deus passaria a caber e a pertencer ao domínio do relativo. É verdade que há inúmeras tentativas ou teorias de demonstração da existência de Deus e muitos afadigam-se por encontrar a demonstração perfeita e irrefutável. De igual modo, muitos crentes, por vezes de forma angustiosa, são impelidos a basear a sua fé em Deus numa prova científica ou filosófica demonstrativa cabal da Sua existência. Ora, a verdade é que todas as teorias de demonstração da existência de Deus podem ser refutadas o que levaria a uma conclusão – nenhuma teoria pode afirmar ou negar a existência de Deus. E porquê? Porque, rememorando o que atrás se diz, estamos a lidar com o ser absoluto e, como seres relativos, faltam-nos as competências e as ferramentas próprias para afirmar ou negar irrefutavelmente tudo quanto concerne a Deus. Este facto não nega nem impede, porém, que, quem creia em Deus, não possa ou não deva reflectir lógica e racionalmente sobre Deus e os Seus atributos. De resto, toda esta exposição é prova do que acabamos de afirmar.
A resposta à pergunta não é fácil de dar e depende dos pressupostos de que se parte. Dada a impossibilidade de se comprovar experimentalmente toda a declaração feita directamente ou em nome de Deus, como saber que uma dada mensagem considerada proveniente de Deus, veio de facto d’Ele? Seria sempre necessário partir da hipótese (indemonstrável) da Sua existência. É sempre com base nessa hipótese que qualquer reivindicação da origem divina de uma mensagem, de um acontecimento ou de uma realização tem de ser analisada. Essa é a posição do autor da epístola aos Hebreus ao declarar: “É necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe e que é galardoador dos que O buscam” (7). E aqui entra um elemento indispensável, diríamos central e insubstituível, para a resposta à pergunta em apreço. Esse elemento é a fé, no sentido de convicção e confiança. A convicção é o esteio da certeza e esta vai-se alicerçando cada vez mais à medida que o crente se aproxima de toda a mensagem ou intervenção tida como proveniente de Deus, quer directamente quer por algum intermediário.
Esta convicção resulta da escolha em favor da existência quando a pessoa é confrontada com a impossibilidade da afirmação ou negação da existência de Deus. Quem opta pela não existência, embora de forma sincera e em busca das respostas últimas à existência, segue o seu caminho em diálogo constante com a sua contingência, buscando argumentos em favor da sua opção. Em última análise e instância, pode seguir nessa opção até ao final dos seus dias ou chegar à conclusão de que esgotou os argumentos em favor da não existência de Deus, só lhe restando testar a opção oposta e que até então rejeitara. Quem opta pela existência procura ver em cada declaração tida como proveniente de Deus não apenas a confirmação da sua opção mas a identificação com a sua hipótese de partida. Concluímos então que a fé na existência de Deus, fé no sentido de convicção, é fundamental para que o crente receba como fidedigna uma mensagem ou intervenção atribuída a Deus. Não é, pois, por acaso que a Palavra de Deus declara que o justo viverá pela fé (8). Repare-se na parte final deste último versículo (Hebreus 10:38): “se ele [o justo] recuar, a minha alma não tem prazer nele”. Ou seja, se a pessoa não tiver fé na existência de Deus, Deus deixa de existir para ela.
Posto o problema nestes termos, é forçoso olhar ao nosso redor e ver como se apresenta o universo teológico de todos quantos optaram pela hipótese da existência de Deus, sem descurar as objecções ou contra-argumentos de quem defende a não existência de Deus. Ou seja, devemos analisar as diversas propostas desse universo e fazê-las passar pelo crivo fino e exigente da sua congruência.
Nesse esforço, podemos classificar de diversas formas o universo teológico: politeísmo, panteísmo ou monoteísmo, teologias (ou religiões) reveladas ou naturais (não reveladas). Sem entrar em grandes pormenores, podemos centrar a atenção no monoteísmo revelado. Rapidamente as razões dessa preferência em detrimento das outras perspectivas são:
1) No caso do politeísmo está ausente necessariamente a figura de um Deus absoluto. Se os deuses são vários, então não são absolutos. Em última instância, o politeísmo e o naturalismo ou o animismo movem-se nos mesmos pressupostos porque os diversos deuses dos politeísmos acabam por ser a encarnação de forças naturais que os animistas reverenciam. De certo modo, o politeísmo é um animismo de grau elevado.
2) No caso dos panteísmos, esta perspectiva acaba por ser um meio-termo entre um politeísmo e um monoteísmo. Em última instância, o deus (ou deuses) dos panteísmos perde ou compartilha o seu carácter absoluto com quem é do domínio do relativo ou então o outro elemento, por norma a natureza, surge como absoluto. Num caso ou no outro, o deus dos panteísmos surge sempre como não absoluto ou, no mínimo, o que seria o mesmo, como um absoluto truncado ou bipartido.
3) No caso do monoteísmo, se Deus é uma pessoa, então é natural que Ele fale porque o verbo, a fala, a comunicação é o que caracteriza a pessoa. É verdade que nos monoteísmos podemos encontrar a figura de um Deus impessoal para quem o destino da criação é indiferente. É o caso dos diversos deísmos. Ora, parece-nos, salvo melhor opinião, que o deísmo é de grau inferior a qualquer teísmo porque toda a pessoa apresenta uma outra característica, a de criador interessado na sua criação. Sendo uma pessoa, o Deus dos monoteísmos tem necessariamente de ser criador e de estar interessado (e muitas vezes envolvido) na Sua criação.
Note-se que referimos monoteísmos e não apenas monoteísmo. De facto, encontramos vários monoteísmos tanto na actualidade como ao longo da história. Centrando-nos na actualidade, detectamos três monoteísmos, indicados pela sua ordem de aparecimento: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Há quem considere o Siquismo um monoteísmo, mas tendo nós reservas quanto a essa classificação, preferimos não o abordar. Ora, a existência dos três monoteísmos levanta várias interrogações: são variantes de um só monoteísmo ou estaremos na presença de três monoteísmos distintos e, em última análise antagónicos. Subjacente a estas interrogações, a interrogação maior: o deus dos três monoteísmos é o mesmo ou cada um apresenta um deus diferente?
Sem aprofundarmos a questão, podemos salientar que os três monoteísmos apresentam traços comuns tanto na concepção de quem Deus é como se reivindicam de uma herança comum. No entanto, a uma análise mais fina, verificamos que há uma maior proximidade entre Judaísmo e Cristianismo, o que significa que, dos três, o Islamismo é o que mais distinções e diferenciações apresenta. As semelhanças e proximidades entre Judaísmo e Cristianismo são tais que podemos dizer, sem entrar em erro, que o Cristianismo é uma releitura do Judaísmo. Por algum motivo se fala de uma civilização judaico-cristã. De facto, as Escrituras cristãs aceitam como revelação divina todo o Antigo Testamento que é lido e interpretado não apenas no seu contexto histórico mas também como palavra de Deus preparatória de uma revelação que é continuação do que fora revelado até ao aparecimento de Cristo. Jesus Cristo, personagem histórica que, na leitura cristã, surge como clímax de todas as promessas de redenção apresentadas no Antigo Testamento.
No monoteísmo revelado, é natural que se fale em revelação. De facto, sendo Deus um ser absoluto que escapa ao escrutínio de uma análise sensório-objectiva, exigência de qualquer ciência, só O podemos conhecer e ao Seu querer, carácter e planos para a criação, se Ele próprio se revelar. Das revelações tidas como provenientes de Deus, concluímos que a que apresenta Deus com todas as características expectáveis de um ser absoluto é a Bíblia Sagrada. Por isso, podemos afirmar que ela é sem sombra de dúvidas a única fidedigna. Qualquer característica que possamos atribuir merecidamente a Deus, vamos encontrá-la nas páginas da Bíblia. Deus único, omnipotente, pessoal, que é amor, justiça, rectidão, etc., tudo vamos encontrar na Bíblia. Um agnóstico ou um ateu que analise com imparcialidade o texto bíblico terá de confessar que tudo quanto poderia esperar de Deus está na Bíblia. Ou, dizendo de outro modo, que a elaboração judaico-cristã das características de Deus é final e absoluta. Se compararmos a Bíblia com o Alcorão, verificamos que tudo quanto este último possa dizer das características, da personalidade e dos planos de Deus para a Sua criação se encontram já expresso de forma directa ou indirecta, implícita ou explicitamente nas páginas da Bíblia. Nesse sentido, a um monoteísta crente na Bíblia, o Alcorão nada acrescenta às características de Deus que ele já não conheça, aprecie ou tenha experimentado ou descoberto.
Temos, então, uma revelação escrita onde o crente pode ir buscar todas as respostas para as suas inquietações humanas, em qualquer campo do seu envolvimento pessoal: espiritual, social, económico, político, etc. Por isso, é fundamental que o crente, o cristão neste caso, esteja familiarizado com a Bíblia Sagrada e dela faça a sua bússola na sua caminhada terrena.
Falamos de revelação. Ora, revelação implica, como vimos, palavra ou comunicação, característica fundamental de pessoa. Sendo Deus uma pessoa, então é natural que comunique pela palavra. E é curioso porque, como seres relativos que somos, necessitamos sempre de uma forma para perceber e entender a realidade. Damos formas às coisas através de outros objectos ou de símbolos verbais ou não. O homem dá assim uma forma a todos os seres, uma vez que só tem a capacidade de apreender a realidade através desse meio. Por isso, alguém designou o ser humano como o homem simbólico. Sendo Deus um ser, mesmo sendo o ser absoluto, é necessário ao homem dar-Lhe uma forma para O perceber e entender. Por isso, ao longo da história da humanidade, vemos o homem atribuir à divindade as mais diversas formas. Ora, Deus sabe dessa contingência humana e, por isso, tem de se apresentar sob uma forma ao homem para dele ser conhecido ou, melhor dizendo, ser começado a ser conhecido. Verificamos, porém, que tendencialmente o homem acaba por identificar a forma da representação da divindade com a própria divindade. Ao fazê-lo, na prática acaba por atribuir a glória que apenas a Deus pertence à forma que O representa. Ora, a Escritura é muito clara ao declarar “Eu sou o Senhor; este é o meu nome; a minha glória, pois, a outrem não darei, nem o meu louvor às imagens de escultura (ou aos ídolos)” ( ). Por essa razão, a Bíblia é muito enfática ao declarar guerra aberta à adoração de ídolos, assumam eles a forma que assumirem. O Decálogo é disso prova exemplar: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam” ( ). No entanto, devido à nossa contingência, continuamos a necessitar de uma forma que nos identifique Deus. O Deus da Bíblia sabendo disso encontra a solução, retratando-se através de uma das Suas características – Deus é um Deus loquans, um Deus que fala. Por isso, o nome de Deus, que é uma forma de O representar, é merecedor de todo o respeito e reverência. Por isso, de novo no Decálogo, vemos a proibição de invocar o nome do Senhor Deus em vão (9). E Deus é um Deus loquans porque a primeira acção que d’Ele temos registada não foi algo que Ele tenha feito. A Sua primeira acção foi a fala: “Disse Deus” (10). Deus é, então, Palavra. Não é por acaso que Jesus, que é a imagem visível do Deus invisível (11), é chamado o Verbo divino (12). Ou seja, tudo quanto queremos conhecer de Deus, vamos encontrar a resposta na mensagem e no ministério de Jesus.
Ainda quanto à forma de representação de Deus, há no Novo Testamento um texto curioso e paradigmático em relação a Jesus, que O declara como sendo em forma de Deus (13). É bom não esquecer que o autor desta afirmação é o estudioso e grande conhecedor das Escrituras hebraicas, o apóstolo Paulo, para quem colocar alguém a par de Deus Yavé era algo de impensável.
Como ser absoluto que é, todas as características de Deus são também absolutas. Seria tarefa quase impossível enumerá-las todas. Por isso, citaremos apenas algumas, tendo sempre em mente que elas também se encontram em Jesus, na medida em que, como vimos atrás, Ele é o verbo divino. Na verdade, todas as características e atributos de Deus podem ser condensadas numa única expressão: Deus é santo. Por isso, Isaías declara enfaticamente: “Santo, santo, santo é o Senhor” (14), expressão essa que é repetida na visão de João em Patmos (15). Tradicionalmente, define-se santo como algo de magnífico, de intocável, de inconspurcável, de transcendente. Sem negar a verdade dessas definições, podemos considerar um outro sinónimo: perfeito. E perfeito no seu sentido etimológico: algo que está completo, a que nada falta. Recordamos certamente a designação de ”capelas imperfeitas” no mosteiro da Batalha. Elas são imperfeitas não porque tenham algum defeito, mas porque simplesmente não foram concluídas. Ora, neste sentido de perfeito, Deus é santo porque n’Ele nada falta para que seja o que é, porque é o Ser Absoluto, logo, perfeito. Foi nessa qualidade que se revelou a Moisés quando este Lhe perguntou o seu nome. “Eu sou o que sou” foi a resposta (16). E repare-se que tal como Deus se revela no Antigo Testamento como aquilo que é (Justiça Nossa, dos Exércitos, Bom Pastor, etc.), Jesus também se identifica por aquilo que Ele é: o caminho, a verdade, a vida, a ressurreição, o bom pastor, a porta, etc. Isto mostra-nos que, como Seu seguidor, o cristão deve habitar no domínio do ser e não do ter. Somos o que somos não por aquilo que temos mas por aquilo que somos. Por isso, en passant, como crentes na acção do Paráclito, podemos dizer que os frutos do Espírito revelam o carácter, o ser, do crente em quem o Espírito Santo habita. Por isso, sem descurar os dons, o crente em Jesus deve estar mais preocupado em ser abundante nos frutos do Espírito Santo.
Sendo perfeito, então Deus é-o em tudo quanto diz respeito à Sua relação com o homem, Sua criação. E como o semelhante se aproxima do semelhante, não nos espanta a exigência feita através de Moisés “Sede santos, porque eu sou santo” (17) e que Pedro repete (18). Ora, sendo o homem pecador, estando por isso cortado da presença de Deus, é necessário que ele seja vivificado para prestar culto a Deus. Em todo o universo religioso, há a noção de que para o adorador ser aceite por Deus tem de se aproximar com uma oferta sacrificial que, por isso mesmo, passa a pertencer à divindade. Ora, o sacrifício máximo, a oferta última e derradeira, é a entrega da própria vida. Mas como ao dar a sua vida, o homem assume uma dupla morte, a espiritual e a física, fica impossibilitado de ter comunhão com o Criador que, através da recepção da sua oferta, se torna o seu Salvador. Por isso, o homem necessita da oferta de uma vida vicária. Nesse sentido, vemos que é em torno desta realidade que se move e se centra todo o sistema sacramental do Antigo Testamento. O sacrifício surge, então, não tanto para agradar a Deus, mas como caminho para a redenção do homem, da sua compra ao pecado que o afasta de Deus e da comunhão que pode e deve ter com o Criador.
No Antigo Testamento há toda uma elaboração do sistema sacrificial, com as suas exigências e consequências que não vamos reproduzir aqui. A compreensão do papel e do alcance de todo esse sistema sacrificial vicário vamos encontrá-la no magnífico estudo da epístola aos Hebreus que, sobre o pano de fundo desse sistema sacrificial, interpreta todo o ministério e acção auto-sacrificial de Jesus. Quem lê esse tratado aos Hebreus não pode ficar insensível não só face à profundidade desse estudo como também das consequências e alcance da obra daquele que João Baptista declara e confessa como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (18). Num judeu, esta expressão “Cordeiro de Deus” e a acção que dele resulta, a “extirpação do pecado do mundo” não são inocentes nem inócuas. O cordeiro era a vítima preferencial dos sacrifícios judaicos. Deveria ser apresentado sem mácula nem mancha (20) para o sacrifício cruento. Mas há aqui, nesta declaração de João Baptista, uma novidade: enquanto no AT o animal a sacrificar era do penitente (leitura objectiva), aqui, com Jesus, a oferta sacrificial é de Deus (leitura subjectiva). É verdade que também se pode interpretar no sentido de o cordeiro ser oferecido a Deus (como o era), sendo portanto “de Deus”, mas a leitura subjectiva está também correcta e, por isso, é perfeitamente aceitável e a mais correcta, como veremos a seguir. Mas a novidade continua porque, enquanto no AT o sacrifício era contínuo pois cada pecado exigia um novo sacrifício, agora com este Cordeiro de Deus, trata-se de uma oferta uma vez por todas, conforme a magnífica elaboração do estudo da epístola aos Hebreus 9 que conclui pela perfeição do sacrifício de Jesus Cristo. Ora, a perfeição é característica de Deus, o que significa que se o Cordeiro é de Deus, então esse Cordeiro é perfeito, é divino. Sendo o Cordeiro de Deus a pessoa de Jesus, a conclusão lógica é pela perfeição de Cristo que assume assim um carácter divino. Sendo o sacrifício do Cordeiro um sacrifício perfeito, isso significa que foi suficiente e bastante, na medida em que, enquanto no AT o sacrifício cobria o pecado, neste o sacrifício apaga o pecado.
A finalidade do sistema sacrificial no AT era conseguir que se restabelecesse a relação entre Deus perfeito e, logo santo, e o homem imperfeito, logo pecador. O Novo Testamento vai mais longe e declara que a finalidade do sacrifício do Cordeiro de Deus não se fica apenas pelo restabelecimento da relação entre Deus e o homem, mas proclama a transformação do homem de pecador perdido e desgarrado em filho de Deus (21). Deste modo, através de uma oferta do próprio Deus que se identifica com o Homem na sua qualidade de ofertante de um sacrifício, a justiça e a santidade de Deus encontram-se, encerrando nesse círculo todos quantos se identificam com esse sacrifício que o próprio Deus ofereceu.
(1) Eclesiastes 1:1
(2) 1 João 2:17
(3) Romanos 11:34; 1 Coríntios 2:16
(4) Job 42:2
(5) Génesis 3:8
(6) Génesis 6:6
(7) Hebreus 11:6
(8) Romanos 1:17; Hebreus 10:38.
(9) Isaías 42:8.
(10) Êxodo 20:3-5.
(11) Êxodo 20:7.
(12) Génesis 1:3.
(13) Colossenses 1:15.
(14) João 1:14.
(15) Filipenses 2:6.
(16) Isaías 6:3.
(17) Apocalipse 4:8.
(18) Êxodo 3:14.
(19) Levítico 11:44
(20) 1 Pedro 1:16
(21) João 1:29, 36.
(22) Levítico 1;3; 22:21.
(2) 1 João 2:17
(3) Romanos 11:34; 1 Coríntios 2:16
(4) Job 42:2
(5) Génesis 3:8
(6) Génesis 6:6
(7) Hebreus 11:6
(8) Romanos 1:17; Hebreus 10:38.
(9) Isaías 42:8.
(10) Êxodo 20:3-5.
(11) Êxodo 20:7.
(12) Génesis 1:3.
(13) Colossenses 1:15.
(14) João 1:14.
(15) Filipenses 2:6.
(16) Isaías 6:3.
(17) Apocalipse 4:8.
(18) Êxodo 3:14.
(19) Levítico 11:44
(20) 1 Pedro 1:16
(21) João 1:29, 36.
(22) Levítico 1;3; 22:21.