Coerência e Consequência
E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. (João 12:32)
(João 12:27-36)
Esta secção vem no seguimento do diálogo travado entre Jesus e os Gregos que O procuraram, os quais, como mencionámos, deixam de ser referidos nos versículos seguintes.
Agora, Jesus dirige-se aos Seus e à multidão, embora esta interacção comece com o que podemos considerar uma confissão pessoal do estado de alma de Jesus: “Agora, a minha alma está perturbada. E que direi eu: Pai, salva-me desta hora? Mas para isso vim a esta hora!” (v. 27). Sem forçar o texto, podemos detectar uma ligação entre esta declaração e a que Jesus apresentara momentos antes: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só, mas se morrer dá muito fruto” (v. 24). Uma é consequência da outra. Na verdade, Jesus está a comparar a Sua vida com a vida do grão de trigo. Este, para frutificar, necessita de ir pelo caminho da auto-renúncia, o que lhe provocará a morte. De igual modo, para que da vida de Jesus saia muito fruto, é necessário que Ele aplique a si a mesma receita – que se auto-renuncie e enfrente a morte. Tendo presente esta realidade e mantendo a coerência do que ensinava e do que momentos antes dissera, não admira que Jesus confesse a perturbação que O invade.
Como homem íntegro que era, no pleno uso da Sua vitalidade, há sem dúvida uma luta com a aceitação dessa consequência. Mas Jesus sabe que tem de ser coerente até ao fim. Mas também sabe qual a razão da Sua vinda a este mundo. Todo esse drama e confronto estão manifestos no que diz. Parafraseando-O, podemos reformular toda a sua expressão: “Como um grão de trigo que para dar fruto tem de passar pela morte, assim também eu, para que o meu ensino dê fruto e eu próprio sirva de alimento espiritual às gerações futuras, tenho de passar pelo mesmo processo. O meu desejo de viver grita contra essa perspectiva e a minha coerência leva-me a ficar perturbado. Que fazer? Ceder a essa minha vontade e desejo e pedir ao Pai um outro caminho? Mas como pode Deus aceder a um tal pedido? Como posso eu não me sujeitar aos desígnios de Deus? Aceitei o plano que o Pai tinha para mim e isso implicava ser como o grão de trigo.”
Repare-se que esta angústia se vai manifestar de novo no Getsémani, de modo muito patente na Sua oração: “Pai, se é possível, passa de mim este cálice!”
Em suma, Jesus tem plena consciência da Sua missão e das suas consequências, mas também sabe que tem de manter até ao fim a Sua coerência porque só assim se manterá em sintonia com a vontade de Deus.
A missão de cada um de nós não apaga a nossa humanidade de perturbação, de revolta ou de angústia. Tudo isso são emoções que nos assaltam em resultado da nossa condição humana. Deus sabe a massa de que somos feitos mas também sabe que permanecerá sempre connosco, sejam quais forem as circunstâncias. Por vezes, nós é que nos esquecemos dessa realidade.
No seguimento desta confissão que surge como um pensamento íntimo dito em voz audível e perante a perturbação e o dilema que enfrenta, Jesus não toma outra decisão senão a de entregar a resolução do caso nas mãos de quem tem todas as respostas. Assim, dirigindo-se ao Pai, exclama: “Pai, glorifica o Teu nome” (v. 28). Uma outra versão diz: “Pai, manifesta a glória da Tua pessoa!”, enquanto uma outra declara: “Pai, manifesta o Teu poder!” Estas três versões complementam-se.
Há sem dúvida a tentação de Jesus pedir a Deus que O retire da situação em que a Sua missão O envolveu. Mas Ele prefere invocar Deus como Pai, o que é deveras significativo porque traduz a ideia de proximidade e de comunhão íntima. E ao invocar Deus como Pai, Jesus preocupa-se não consigo mesmo ou com o Seu dilema e angústia pessoais, mas com a glória e o poder da pessoa de Deus. Estaremos nós, nas nossas angústias e dilemas, na hora da nossa maior perturbação, dispostos a colocar em primeiro lugar não a nossa pessoa e os nossos problemas, mas a manifestação da glória e do poder de Deus enquanto Pai?
Não sabemos quanto tempo tardou a resposta a esta oração, mas o texto diz que ela veio de um modo sensível, audível: “Então, veio uma voz do céu que dizia: Já o tenho glorificado e outra vez o glorificarei” (v. 28).
Repare-se que a voz “veio do céu”, ou seja, do domínio do divino, do transcendente. Não veio do conselho humano, da cogitação pessoal, mas “do céu”. Há momentos na nossa vida em que a resposta tem de vir do céu e isso sem qualquer menosprezo pelos conselhos humanos ou pela reflexão pessoal. Há momentos em que nada mais substitui uma voz vinda do céu… Em hebraico, voz também significa trovão, ou seja, a mesma realidade pode ser interpretada de formas diferentes.
E foi o que aconteceu: “Ora, a multidão que ali estava e que a tinha ouvido, dizia que havia sido um trovão. Outros diziam: Um anjo lhe falou” (v. 29). Face aos acontecimentos que envolvem o sobrenatural, há os que reduzem essas manifestações a meros fenómenos físicos e procuram explicá-las recorrendo apenas ao domínio do mundo natural, para além do qual nada mais conta. Já outros recorrem ao misticismo, a uma natureza esotérica do mundo maravilhoso, em que por norma Deus também não está presente, porque o que conta é o mundo das visões, das aparições que a breve trecho descambam em superstições. Para Jesus, essa voz trazia uma mensagem muito clara, passível de interpretação e de compreensão. E em resposta à multidão, a partir do versículo 30 Jesus faz afirmações de extrema importância.
Começa por declarar e esclarecer que “não veio esta voz por amor ou por causa de mim, mas de vós” (v. 30). Jesus reafirma a natureza desse fenómeno, desse som – não foi um trovão, não foi um anjo, mas foi uma voz vinda de Deus. Ora, quem tem uma relação com Deus, como era o caso do povo judeu, associa de imediato a voz com a expressão da vontade de Deus. Foi assim no Éden, quando Adão ouvia a voz de Deus, foi assim com Moisés quando ouviu a voz de Deus no episódio da sarça ardente e também no monte Sinai, foi assim com Samuel quando ouviu a voz de Deus, embora a princípio a tivesse tomado como vinda de Eli, foi assim com muitos outros, incluindo profetas, sacerdotes e reis. E o autor da epístola aos Hebreus recorda-o: “Havendo Deus antigamente falado… de muitas maneiras” (Hebreus 1:1).
Toda a voz se dirige a alguém por alguma causa e transmite uma mensagem. Esta não foi excepção. Ela veio por causa da multidão! E há aqui um paralelo com Moisés. Na outorga da Lei no Sinai, Deus falou directamente a Moisés, mas o povo estava distante. No Antigo Testamento, Deus falava apenas ao mediador que por sua vez transmitia a mensagem recebida ao povo distante, sujeito a castigo caso transgredisse a ordem de se manter afastado (Êxodo 19:10-25).
Mas agora, Deus falava directamente a todos, mesmo que nem todos entendessem com clareza o que ouviam. Agora com Cristo, podia haver uma ligação directa com Deus, cuja glória poderiam contemplar não apenas no julgamento e expulsão do mal deste mundo, mas também no próprio Jesus cuja morte atrairia todos a uma comunhão plena e directa com Deus.
Embora para os Cristãos, que já são beneficiários da obra de Cristo, estas palavras façam sentido, para a multidão que as ouvia pela primeira vez provocavam dúvida e estupefacção. À multidão não custou aceitar que “agora é o juízo deste mundo, agora será expulso o príncipe deste mundo” (v. 30). Isso fazia parte da sua crença e das suas expectativas escatológicas. Afinal, havia uma luta entre o bem e o mal e o destino deste era ser derrotado de vez. De resto também, naquele tempo não faltavam vozes apocalípticas anunciando precisamente isso. O que a multidão achou estranho foi o meio pelo qual esse julgamento e expulsão viriam. Jesus dissera-o com todas as letras: “Quando eu for levantado da terra, todos atrairei a mim” (v. 32). Para que ao leitor não restassem dúvidas quanto ao significado dessa declaração, o versículo 33 explica-a de forma muito clara. Era uma referência não só à Sua morte mas também ao tipo de morte.
Ora, essa declaração ia ao arrepio da convicção generalizada em relação ao Messias e isso é afirmado pela população: “Nós temos ouvido da Lei que o Cristo, ou seja, o Messias prometido, permanece para sempre” (v. 34). Repare-se que eles dizem “temos ouvido da Lei” e não “temos lido na Lei”. Se “tinham ouvido”, isso significa o resultado do que aprenderam ou do que alguém lhes ensinara. O seu conhecimento dependia não de um esforço pessoal de descobrirem por si mesmos a verdade, mas das conclusões a que outros haviam chegado. Claro que nem sempre o que aprendemos por essa via está errado. Afinal, o ensino é fruto de uma pesquisa e do estudo das fontes. Mas também é verdade que a mesma realidade pode ser interpretada de diversas formas, muitas delas contraditórias entre si e não poucas vezes sucede que o que aprendemos resulta da aceitação por vezes cega do ensino do mais forte ou do mais influente. É por isso que mesmo sem a intenção de negar ou de pôr em causa o que nos é ensinado, é sempre conveniente e útil ir comprovar por nós mesmos o que nos é ensinado ou aquilo que entendemos do que nos é comunicado. Afinal, foi o que fizeram os crentes de Bereia que confrontaram o ensino de Paulo com o que as Escrituras afirmavam. Sigamos esse exemplo e recorramos sempre à Escritura para com ela confrontar o que nos é ensinado em relação à vontade e plano de Deus.
Ora, à multidão fora ensinado que o Cristo permanece para sempre, o que não deixava de estar correcto. De facto, a profecia relativa ao Messias indicava que ele surgiria para ficar para sempre. Mas essa afirmação não revela todo o quadro. Faltava-lhe indicar o caminho, o percurso que o Messias trilharia. Mas o que lhes fora ensinado, que o Messias permaneceria para sempre, era entendido como significando que ele nunca provaria a morte nem passaria por qualquer tipo de suplício. Assim, não admira considerarem que Jesus, em quem tinham até então depositado tanta confiança e esperança e a quem haviam momentos antes aclamado como o enviado de Deus, não podia ser o Messias. Havia uma clara contradição entre o que fora ensinado/compreendido e a declaração de Jesus de que iria ser supliciado. Se Ele ia passar pela morte, não poderia ser o Messias! E a pergunta surge com toda a lógica: “Como dizes que convém que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?”
E esta é a pergunta que ainda hoje ecoa, a pergunta mais importante ou, pelo menos, a pergunta cuja resposta é a mais importante para o nosso viver: “Quem é este Jesus?” As respostas podem variar, podendo todas elas paradoxalmente não estar erradas, mas estarão incompletas porque se concentram apenas numa característica daquilo que Jesus é. É um reformador? É! É um religioso? É! É um revolucionário? É! E poderíamos continuar. E a resposta a muitas perguntas, talvez não todas, seria positiva, mas essas perguntas estariam focadas apenas num aspecto, talvez não o mais importante, talvez o que mais nos interessasse e o resultado seria viver e entender Jesus não de um modo totalmente errado, mas incompleto e, portanto, imperfeito.
A resposta dada por Jesus a esta observação pertinente é interessante e instrutiva. Poderia ter-se envolvido numa discussão com a multidão, criticando a sua incompreensão e distorção da realidade ou ter enveredado por uma explicitação de quem é o Filho do Homem, mas Jesus procede de outro modo e vai ao fundo da questão, à razão de ser daquela incompreensão, à realidade última. E se os Gregos que O procuraram ainda estivessem presentes e fossem de facto estóicos, mais admirariam Jesus por esta Sua resposta, pela profundidade de pensamento que ela apresentava.
Disse Ele: “A luz ainda está convosco por um pouco de tempo; andai enquanto tendes luz, para que as trevas vos não apanhem, pois quem anda nas trevas não sabe para onde vai. Enquanto tendes luz, crede na luz para que sejais filhos da luz” (vv. 35,36).
Toda esta resposta merece um longo tratamento e uma extensa reflexão e a sua exploração abrir-nos-ia caminho para uma sala repleta de tesouros de sabedoria. Não temos tempo nem engenho para tanto e temos de nos limitar e contentar com uma análise muito superficial.
Jesus deixa implícito que se identifica com a luz: “A luz ainda está convosco por um pouco de tempo.” De resto, noutra ocasião (João 8:12), essa foi a Sua declaração. A luz opõe-se às trevas que são a ausência de luz, mesmo que nelas possa haver um pequeno vestígio de luz. A luz permite-nos enxergar a realidade das coisas com mais nitidez, evitando confundir o real com uma ilusão ou miragem, o que nos levaria ao erro. Quanto mais luz, mais próximos estamos da verdade e da realidade.
Se temos luz, então o caminho lógico é acreditar, é confiar nela, é saber que ela não nos engana. Ao viver nela, tornamo-nos luz também, conforme diz uma outra versão: “Enquanto tiverem luz, acreditem nela, para serem luz também” (BPT).
Esta declaração estabelece também a existência de dois tipos de pessoas ou mentalidades: os filhos da luz e os filhos das trevas. E é interessante notar que embora não esteja incorrecto falar em “treva”, o usual é dizermos “as trevas”, no plural, o que implica que há diferentes tipos de trevas e não apenas de uma só qualidade, enquanto a luz é por norma designada como “a luz”, no singular, embora por vezes se diga “as luzes”, o que nos aponta para a unidade da luz. De facto, fomos chamados à unidade, à unidade com Deus e com o Seu propósito. E isso é possível se formos verdadeiramente filhos da luz. E só o seremos se andarmos na luz, que é Cristo. É o que declara João: “Se andarmos na luz, como Ele na luz está, temos comunhão uns com os outros” (1 João 1:7).
Então, diz Jesus à multidão, para sermos filhos da luz e não nos deixarmos enganar por ensinos errados ou distorcidos, como era o ensino de então sobre o Messias, temos de crer na luz do Seu ensino. O que nos afirma que acima da tradição e do ensino tradicional mantém-se inalterável e disponível a todos a luz da verdade de Deus. E essa luz é a pessoa de Jesus Cristo.
A Deus toda a glória!
SAC, 3 de Janeiro de 2023