A Entrada Triunfal
Mateus 21:1-17
Este capítulo de Mateus refere-se ao período do ministério de Jesus a que se convencionou chamar a Semana da Paixão de Cristo. Ou seja, dá início ao relato dos acontecimentos que irão desembocar na prisão, julgamento, morte e ressurreição de Jesus.
Este facto é importante porque nos encaminhamos rapidamente para o clímax da vida de Jesus, para o momento fundamental da vinda do Salvador a este mundo – a glorificação de Deus na redenção da humanidade através da obra vicária e expiatória de Jesus Cristo.
Sem menosprezo por tudo quanto Jesus fez e disse até este momento, podemos afirmar que sem os acontecimentos que os evangelistas vão narrar a partir deste episódio, a passagem de Jesus por este mundo nunca O elevariam à posição que Ele alcançou na cruz e que foi ratificada na Sua ascensão aos céus.
Como Cristãos, esta é a fase mais importante e significativa da nossa relação com Deus e aquela que nos permite confessar com toda a certeza e garantia que nos tornámos filhos de Deus.
Este capítulo refere seis episódios ocorridos em apenas dois dias da estada de Jesus em Jerusalém:
no primeiro dia, a entrada triunfal de Jesus na cidade e a purificação do templo;
no segundo dia, a figueira que secou a uma ordem de Jesus, a discussão sobre a natureza do baptismo de João Baptista e duas parábolas, a dos dois filhos e a dos lavradores maus.
A sequência dos quatro primeiros eventos é confirmada pelos outros dois evangelhos sinópticos, embora Lucas omita o episódio da figueira.
Diz o evangelho que Jesus entrou em Jerusalém montado num jumentinho, dando assim cumprimento ao que fora anunciado pelo profeta Zacarias: Alegra-te, ó filha de Sião, exulta, ó filha de Jerusalém. Eis que o teu rei virá a ti, justo e salvador, pobre e montado sobre um jumento, sobre um asninho, filho de jumenta. (Zacarias 9:9).
É preciso entender que na cultura judaica da época, o jumento e a mula eram considerados montadas nobres que os reis e os ricos cavalgavam. Para tanto, basta consultar as seguintes passagens do Antigo Testamento:
Débora e Barac dirigem-se aos poderosos de Israel: Vós, os que cavalgais sobre jumentas brancas, que vos assentais em juízo… (Juízes 5:10);
Abraão foi num jumento de Berseba ao monte Moriá: Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada e albardou o seu jumento… (Génesis 22:3);
Dois juízes de Israel, gente poderosa, eram donos de jumentos: E tinha este [Jair] trinta filhos, que cavalgavam sobre trinta jumentos…; E tinha este [Abdom] quarenta filhos e trinta filhos de filhos, que cavalgavam sobre setenta jumentos… (Juízes 10:4; 12:14);
Balaão ia montado numa jumenta: Viu, pois, a jumenta o anjo do Senhor, que estava no caminho com a sua espada desembainhada… (Números 22:23);
Parte da riqueza de Job incluía mil jumentos: E assim abençoou o Senhor o último estado de Job, mais do que o primeiro, porque teve catorze mil ovelhas e sei mil camelos… e mil jumentas… (Job 42:12).
Assim, quando Jesus entra na cidade santa de Jerusalém, vai numa montada digna de uma categoria real, o que indica a sua elevada posição. Atendendo a que partiu d’Ele a ideia de ir montado num jumento, leia-se um meio de transporte régio, isso significa que estava a enviar uma mensagem a quem o recebesse – o rei aproxima-se da cidade.
Por isso, não admira que tenha sido recebido com gritos de hosana (Mateus 21;9; Marcos 11:9) e aclamado como rei pela multidão, conforme Lucas regista (Lucas 19:38).
Recordemos que em Aramaico, hosana significa “peço-te a salvação.” Jesus foi recebido com pedidos e aclamações de salvação, sendo assim reconhecido como aquele que pode conceder a salvação. Jesus é de facto o rei salvador.
Jerusalém não era uma cidade qualquer. Nela situava-se o templo, o ponto central da devoção judaica, a razão de ser da sua existência, um lugar sacratíssimo por natureza. Por estas razões, Jerusalém era considerada a cidade santa por excelência. Disso dá conta o Salmo 137:5-6:
Se me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha dextra da sua destreza, apegue-se-me a língua ao paladar se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.
Por essa razão, na sua visão apocalíptica, João vê a descer do céu a grande cidade morada de Deus, que designa por santa Jerusalém (Apocalipse 21:10).
A cidade de Jerusalém era já conhecida nos tempos de Abraão (Génesis 14:18) como cidade de Salém, cujo rei, Melquisedeque, era sacerdote do Deus Altíssimo e que, para o autor de Hebreus, representava uma figura de Cristo (Hebreus 7).
Apesar de os Israelitas estarem já instalados em Canaã, a terra prometida a Abraão, a cidade de Jerusalém permaneceu nas mãos de amorreus e jebuseus até ser conquistada por David (2 Samuel 5:9), razão pela qual passa a ser conhecida também pela designação de “cidade de David.” Mais tarde, este rei transforma-a na capital do reino, ordenando que nela ficasse instalada a Arca da Aliança.
Após a morte de David, Salomão levanta o templo que se tornará não apenas o centro de adoração da nação, mas também local obrigatório de peregrinação.
Mas apesar de todos esses atributos de santidade, apesar de nela estar a entrar “O rei que vem em nome do Senhor” (Lucas 19:38), numa aclamação esfusiante de alegria e de confiança, é nela que o Salvador é morto, condenado pelo sistema religioso ortodoxo, por aqueles que tinham a obrigação de que estavam incumbidos de zelar pela preservação e difusão da revelação divina e condenado talvez por alguns dos que à Sua chegada à cidade O aclamavam.
Antevendo o fim que a cidade Lhe destinava, ao chegar a Jerusalém Jesus chora sobre ela: Ah! Se tu conhecesses também ao menos neste teu dia o que à tua paz pertence,” conforme Lucas regista (Lucas 19:42).
Nos evangelhos, vemos que Jesus chorou pelo menos duas vezes: uma, por ocasião da morte do Seu amigo Lázaro (João 11:35) e neste episódio da Sua chegada à cidade santa. Muito provavelmente, de forma segura, terá chorado em outras duas ocasiões: quando nasceu, porque todo o bebé chora ao nascer, sinal de que está vivo e quando orava no Getsémani. A angústia que Ele experimentou naquele momento (Mateus 26:37) levou-O a confessar “A minha alma está cheia de tristeza até à morte” (Mateus 26:38). Lucas regista que a angústia era tal que o “Seu suor se transformou em grandes gotas de sangue” (Lucas 22:44).
Após a Sua entrada triunfal, Jesus dirige-se ao templo, onde já estivera antes pelo menos uma vez, por ocasião da Festa dos Tabernáculos e onde faz um dos mais fantásticos e poderosos pronunciamentos: Se alguém tem sede, venha a mim e beba (João 7:37).
O templo era uma estrutura muito complexa. À volta do santuário em si, estendia-se de forma hierárquica uma série de átrios ou pátios. Por ordem decrescente de importância e a partir do santuário, o átrio dos sacerdotes, o átrio dos homens ou de Israel, o átrio das mulheres e o átrio dos gentios.
O santuário estava dividido e duas secções: o Lugar Santo e o Lugar Santíssimo, separados por uma grossa dupla cortina que se rasgaria de alto a baixo por ocasião da morte de Jesus. No Lugar Santo, encontrava-se o altar do incenso, o candelabro de sete braços ou Menorá, sempre aceso, e a mesa dos pães da proposição renovados todas as semanas. Quanto ao Lugar Santíssimo, era uma câmara vazia ao tempo de Jesus mas nela deveria estar a Arca da Aliança entretanto perdida. Nele entrava o sumo sacerdote uma vez por ano, no Dia da Expiação, ou Yom Kippur, o dia mais sagrado para os Judeus, em que era oferecido um sacrifício pelos pecados de todo o povo, confessados ou omitidos.
Todo o conjunto era uma estrutura que podemos classificar com um cunho profundamente hierárquico e concêntrico.
Quando o evangelho diz que “Jesus entrou no templo de Deus e expulsou todos os que vendiam e compravam no templo e derribou as mesas dos cambistas” (Mateus 21:12), temos de entender que “templo” aqui se refere não ao santuário duplo propriamente dito, mas ao local onde o edifício se erguia. Muito provavelmente, o local onde esta cena ocorreu terá sido o átrio dos gentios mais propício a uma actividade comercial de compra de animais para o sacrifício e de transacção cambial.
De facto, ali era o local onde os devotos judeus compravam os animais que iam sacrificar e onde se trocavam as diversas moedas em curso no resto do Império Romano pela moeda corrente no templo, o xéquel.
Não custa imaginar que, tratando-se de uma transacção comercial, o lucro estivesse presente, beneficiando quem vendia. Como também não custa admitir a existência de um aproveitamento por parte da classe sacerdotal, que exercia o seu poder sobre tudo quanto se passava no templo. Desde sempre a indústria religiosa deu bastante lucro. Esse não é um fenómeno novo e ainda hoje está presente.
Mas mesmo sendo um local de transacção comercial e cambial, aquele átrio não deixava de ser um local sagrado, por fazer parte de toda a estrutura do templo.
Por esse motivo, Jesus indignou-se e justificou com a Escritura o Seu acto de derrube das mesas dos cambistas, exclamando: Está escrito: a minha casa será chamada casa de oração. Mas vós a tendes convertido em covil de ladrões. (Mateus 21:13). Ao agir assim, Jesus teve sem dúvida em mente Isaías 56:7 e principalmente Jeremias 7:11: “É, pois, esta casa que se chama pelo meu nome, uma caverna de salteadores aos vossos olhos? Eis que eu, eu mesmo, vi isso, diz o Senhor.”
Antes de se retirar para Betânia para repousar e depois de limpar o local, Jesus ainda teve ocasião para se disponibilizar a curar enfermos (v. 14) e para provocar uma reacção de agrado de meninos que O aclamavam, e de indignação por parte dos principais dos sacerdotes.
As acções de purificação respaldadas pela Escritura suscitam sempre a aclamação dos simples e dos puros e a indignação dos poderosos que vêem nelas uma ameaça às suas posições de privilégio.
Não tenhamos dúvidas: toda a acção de purificação terá de ter sempre o respaldo da Escritura e ela nunca virá pela instrumentalidade de quem está preocupado em última instância em defender os seus interesses pessoais.
Ora, à semelhança do povo israelita que tinha uma cidade santa, centro e razão da sua existência, assim também cada um de nós tem a sua cidade santa. Para uns, será o seu país, a sua cidade de origem ou de habitação, o seu bairro ou a sua rua. Para outros poderá não ser nenhum equipamento urbano mas talvez seja uma propriedade, um bem adquirido ou uma realização pessoal. Para outros ainda, será a família, um grupo de amigos ou uma colectividade que lhes seja querida.
Mas seja qual for a natureza e característica da nossa cidade santa, que mesmo profana é santa para nós, temos todos uma cidade que consideramos santa.
Uma lição que extraímos deste episódio da chegada de Jesus à cidade santa dos Judeus é que “o que vem em nome do Senhor” quer entrar na nossa cidade. Disso é reflexo o texto apocalíptico de João: Eis que estou à porta e bato… (Apocalipse 3:20).
Que Ele está a bater à porta da nossa cidade não há dúvida alguma. Que Ele quer entrar na nossa cidade, essa é uma certeza inabalável.
Que Ele entre na nossa cidade! Que O possamos aclamar com hosanas e com o reconhecimento de que o rei está a chegar. Que da nossa cidade Ele não possa dizer que ela não conhece o que à sua paz pertence, mas que nossa seja a herança da Sua promessa: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. (João 14:27). Não a paz dos cemitérios, não a paz adiada para as moradas celestes, não a paz da fuga para a frente, mas a paz que excede todo o entendimento, aqui e agora (Filipenses 4:7).
De igual modo, à semelhança da estrutura do templo em Jerusalém, todos nós temos um templo. Ou melhor ainda, todos nós somos um templo, conforme diz Paulo: Nós somos o templo de Deus e o Espírito Santo habita em nós. (1 Coríntios 3:16). A verdade é que todo o ser humano é um templo dedicado ao deus da sua devoção e tudo nesse templo, que o mesmo é dizer, em toda a vida tudo gira em torno do deus a que esse templo está dedicado.
Tal como a estrutura do templo de Jerusalém se ordenava em círculos concêntricos hierarquizados, assim nós, qual templo de Deus, temos a nossa vida ordenada em círculos concêntricos hierarquizados. É possível que a ordem dessa concentricidade não seja rigorosamente igual em todos nós, mas que ela se manifesta na existência de cada um, disso não haja dúvidas.
E à semelhança do templo, em que mesmo o círculo mais distante do centro, ou seja, o átrio dos gentios em relação ao Lugar Santíssimo, continuava a ser terreno sagrado e casa do Senhor Deus, assim também no nosso templo que somos nós, o círculo mais afastado do nosso centro e que muitas vezes se confunde (ou confundimos) com o profano, continua a ser terreno sagrado, casa de Deus, templo do Senhor.
Ou seja, não há sector não há área, não há círculo de interesse em que nos movimentemos que esteja longe ou separado da influência da presença de quem habita no nosso Lugar Santíssimo, desde que nos consideremos e sejamos templo do Senhor.
Se somos templo do Senhor, a Sua presença não pode estar arredada de nenhuma área de actividade em que estivermos envolvidos.
Quando porventura conspurcamos ou temos por independente alguma área do nosso templo, não nos espantemos se a seu tempo o nosso rei intervier, derribando as mesas que deixámos que cambistas estranhos ao templo as erigissem e se apossassem de um átrio que de direito pertence ao Senhor.
A Deus toda a glória.
SAC, 28.Setembro.2021