OS GREGOS

Os Gregos

(João 12:20-26)

Ora, entre os que tinham subido a adorar no dia da festa, havia alguns Gregos que se dirigiram a Filipe, de Betsaida da Galileia, a quem rogaram: “Queríamos ver Jesus.” (12:20-21)

 2022dez03 Jorge Pinheiro

Neste texto, lemos que, por ocasião da Páscoa, que seria aquela em que ocorreria a morte de Jesus, se encontravam entre os peregrinos que acorreram à festa em Jerusalém alguns Gregos que manifestaram a Filipe o seu desejo de verem Jesus.

Não sabemos quem eram estes Gregos, qual a sua origem e qual a razão de quererem ver Jesus. Para responder as estas questões só podemos especular ou ficarmos com as conclusões e as referências textuais mais óbvias. Sabemos apenas que eram Gregos, que se dirigiram a Filipe e que queriam ver e presumivelmente ouvir de viva voz o que Jesus ensinava. Muito provavelmente teriam a intenção de Lhe fazer alguma pergunta ou de apresentar algum pedido.

Poderiam ser Judeus que, por viverem em terras gregas, teriam sido alcunhados de Gregos. Não nos parece ser esse o caso, porque nos evangelhos e em João em especial, os Judeus são sempre referenciados pelo nome de Judeus ou do grupo sócio-religioso a que pertenciam. Mas poderiam ser Gregos convertidos ao Judaísmo, os chamados prosélitos ou simplesmente “homens piedosos e tementes a Deus,” à semelhança de Cornélio (Actos 10:2).

Esta segunda hipótese é mais provável, uma vez que se encontravam entre os peregrinos judeus que tinham ido adorar em Jerusalém (v. 20). Sendo então Gregos, ter-se-ão encontrado com Jesus na secção do Templo conhecida como átrio ou pátio dos gentios para além do qual não podiam avançar mais.

É curioso notar que se dirigiram primeiro a Filipe, um dos discípulos de Jesus. Filipe é um nome grego e muito provavelmente seria um judeu marcado perla cultura grega e saberia expressar-se com facilidade nesse idioma.

Há neste encontro alguns aspectos importantes que não devemos ignorar.

O conjunto dos discípulos era de mentalidade e religião judaicas. O ensino de Jesus, embora provocasse controvérsia, estava todo ele alinhado com a mentalidade judaica. Exceptuando uma breve passagem de Jesus por Sídon, na Fenícia, toda a Sua acção e ensino desenrolaram-se em terras judaicas. É assim natural que os discípulos assumissem a convicção de que a mensagem e a acção de Jesus se circunscreveriam apenas à nação judaica, excluindo por consequência os gentios. Acresce que quando os mandou em missão, Jesus ordenara-lhes que fossem apenas às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mateus 10:6).

E, no entanto, há agora da parte de gentios o pedido expresso de quererem falar com Jesus. É muito provável que Filipe tenha ficado hesitante. Repare-se que foi aconselhar-se com André (João 12:21), tendo ambos decidido ir informar Jesus.

E há aqui uma lição para nós: corremos o risco de, enquanto grupo, nos fecharmos entre nós a ponto de, quando surge alguém diferente de nós, com um discurso, uma linguagem e um comportamento diferentes daqueles que são os nossos e a que estamos habituados, hesitarmos sem saber o que fazer ou dizer. Isso terá sucedido com Filipe, mas ele buscou ajuda. Sigamos-lhe o exemplo: não decidamos sozinhos, não nos fechemos aos outros, mas busquemos conselho junto de outro irmão e unânimes conduzamos o forasteiro ao Senhor, que tem para ele uma palavra consoladora e edificante.

O aparecimento de Gregos, de gentios, que não partilhavam da mentalidade judaica é um sinal que João nos dá de que o Evangelho não se limita nem se destina apenas a um grupo mas tem um alcance universal. Esta dificuldade de perceber a universalidade do Evangelho está bem patente no livro de Actos (cap. 10), com a conversão de Cornélio e com as viagens missionárias de Paulo em território gentio, de que resultou a conversão de numerosos outros gentios. A aceitação de gentios na comunidade cristã e o reconhecimento da universalidade do Evangelho ficaram comprovadas nas decisões do Concílio de Jerusalém (Actos 15), daí resultando a manutenção da unidade da Igreja com respeito pela diversidade dos seus membros.

Mas o aparecimento, o pedido e o interesse destes Gregos revelam uma outra marca de universalidade do Evangelho. Mateus diz-nos (2:1) que no início da vida humana de Jesus vieram do Oriente uns sábios para O adorarem. Agora, perto do final da vida de Jesus, do Ocidente chega um grupo de gentios que expressam o desejo de O ver e de eventualmente O adorar. Em Jesus, juntam-se o Oriente o Ocidente, numa soberba marca de universalidade. E se considerarmos os sábios como representantes de um conhecimento místico e os Gregos como representantes do pensamento lógico, pelo seu apego à filosofia, podemos afirmar que em Jesus se encontram o misticismo e a lógica. Jesus consegue estabelecer a união entre os dois saberes e experiências que não estão assim em conflito.

Glorioso é este Senhor que é em si mesmo o ponto de encontro de toda a Humanidade com a sua diversidade! N’Ele há unidade e não unicidade! N’Ele há harmonia na diversidade e não a imposição ditatorial e arbitrária da exclusão do Outro diferente! N’Ele há uma estrada construída com as pedras da nossa diversidade e não o levantamento com essas mesmas pedras de um muro de separação! N’Ele, a espada transforma-se em cruz que abraça os que estão em lados opostos e une o terreno com o divino! Esse é o Jesus da Igreja!

Filipe e André levam assim os Gregos a Jesus. O versículo 23 dá-nos conta de que Jesus lhes dirige a palavra, em declarações que não só revelam o Seu pensamento, mas também o que o futuro próximo Lhe reservaria. O restante capítulo não volta a mencionar os Gregos, o que parece indicar a sua integração no grupo dos discípulos. Não seria de estranhar que eles integrassem o futuro corpo de diáconos que o crescimento da Igreja obrigou a criar. É que se lermos com atenção o nome dos sete diáconos (Actos 6:5), verificamos que todos eles são de origem grega, com a curiosidade de um deles, Nicolau, ser chamado “prosélito de Antioquia”, uma cidade grega.

O que sabemos é que mesmo vindo de outro ambiente, mesmo que o nosso nome seja omitido, ouviremos as palavras de Jesus sempre que manifestamos o desejo de O querermos ver para d’Ele aprender.

O discurso de Jesus estende-se do versículo 23 até ao final do capítulo, no versículo 50 e podemos dividi-lo em duas partes: do versículo 23 ao 26, dirigido aos discípulos e aos gregos e do versículo 27 até ao final numa interacção com a multidão presente.

Vejamos rapidamente o que Jesus comunica aos discípulos:

No versículo 23, pela primeira vez neste evangelho Jesus assume ser chegada a Sua hora. Até então, há pelo menos duas ocasiões em que é declarado explicitamente que ainda não era chegada a Sua hora: uma, por Ele mesmo, no episódio das bodas de Caná (João 2:4) e outra pelo evangelista João, quando na zona do Templo O quiseram prender na sequência da Sua afirmação de ter uma relação especial com Deus (João 7:30). Ou seja, Jesus deixa claro que a Sua missão se aproxima do fim, o que acaba por provocar admiração pela contradição entre essa declaração e a aclamação de que fora alvo momentos antes pela população: “Hosana: bendito o Rei de Israel que vem em nome do Senhor” (v. 13). Como pode o aclamado “rei de Israel” estar perto do fim? Talvez num primeiro tempo essa “chegada da minha hora” pudesse ter sido interpretada como significando que Jesus ia assumir o trono de Israel e reinar. No entanto, logo a seguir, Jesus desvanece essas esperanças ao deixar implícito que se referia à Sua morte, numa identificação com o grão de trigo que, para frutificar, precisa de se entregar à morte (v. 24).

Convenhamos que para quem esperava d’Ele a assunção de ser um líder político que levaria a nação à sua glória perdida, estas palavras são um autêntico balde de água gelada. Um rei procura a glória pessoal e colectiva, muitas vezes por esta ordem, mas a verdade é que Jesus não nega que o Seu caminho desemboca em glória. Repare-se que Ele diz que o grão de trigo dará muito fruto – essa é a sua glória. Só que a forma como essa glória virá não será pela opressão do outro, não será pela violência, não será pela imposição forçada mas pela auto-renúncia, pela aceitação da realidade mesmo adversa e do direccionamento das suas circunstâncias para um bem maior que se destina não em exclusivo ao próprio, mas em crescimento e alimento do Outro seu semelhante.

Jesus prossegue nesta mesma tónica (v. 25), salientando a necessidade imperiosa da auto-renúncia, ao ponto extremo de não considerar a própria vida como apenas sua mas como um bem reprodutivo e perene para todos.

Para muitos, este discurso é incompreensível e não faz sentido porque vai contra toda a lógica do interesse humano e, no entanto, ela baseia-se num facto comprovado e conhecido da Natureza: o grão de trigo, qualquer grão, tendo em si o potencial de reprodução, precisa de se auto-renunciar para que essa reprodução ocorra. Como sociedade agrícola que era, a nação judaica não desconhecia esse facto.

Voltemos aos Gregos para tentarmos perceber que impacte estas palavras lhes terão produzido. Sendo Gregos prosélitos ou Judeus alcunhados de Gregos, uma coisa era certa: estavam influenciados pela cultura grega e não desconheciam as características da mentalidade grega. Ao tempo de Jesus, havia várias escolas ou correntes filosóficas entre os Gregos, de entre as quais se destacavam duas: o Estoicismo e o Epicurismo. Basta consultar Actos 17:18 para comprovar esse facto.

Embora tendo aparecido dois a três séculos antes, estas duas escolas exerceram uma forte influência no pensamento e comportamento de toda a bacia mediterrânica e havia uma certa rivalidade entre ambas.

Caracterizando-as muito resumidamente, podemos dizer o seguinte:

O Epicurismo assumia um carácter materialista, naturalista e não determinista, ignorando os deuses que não estavam interessados na pessoa humana porque, sendo perfeitos, nada podiam aprender ou aproveitar da imperfeição humana. Logo, o Homem está entregue a si mesmo e deve esforçar-se por eliminar a dor e o sofrimento, buscando a felicidade que encontra nos prazeres que lhe tragam essa felicidade.

Quanto ao Estoicismo, embora visando a felicidade e o bem-estar, defende que isso se consegue pela prática das virtudes, levando uma vida ética que se traduz pelo autocontrolo e pela rejeição de todo o prazer que prejudique esse autocontrolo e vá contra a obtenção e concretização de uma vida ética. Um estóico procura compreender a razão universal, o Logos, que está acima daquilo que é aparente. Igualmente, o estóico aceita o escravo como seu igual porque a escravidão não lhe retira a sua condição humana, embora a circunstância vá em sentido contrário.

Tendo em atenção a sua condição de Gregos, estes homens não desconheciam a importância e influência destas duas escolas e muito provavelmente seriam estóicos porque há alguma coincidência entre a doutrina básica do Estoicismo e a resposta de Jesus nos versículos 23 a 26.

Se repararmos nas interacções de Jesus com quem Ele entrou em contacto, verificamos que Jesus falou sempre recorrendo ao tipo de linguagem e de pensamento do Seu interlocutor. Basta comparar dois exemplos: as conversas com Nicodemos (João 3) e com a Samaritana (João 4) para perceber que Jesus não falou com ambos da mesma maneira. Não haveria razão para, neste caso, Jesus proceder de forma diferente e, portanto, falou aos Gregos usando uma linguagem que eles entendiam.

Sendo provavelmente estóicos, estes Gregos terão sido atraídos tanto por aspectos formais como de conteúdo do discurso de Jesus. Estoicismo deriva da palavra grega stoa que significa pórtico ou alpendre, que era o local onde Zenão de Cítio, o seu fundador, costumava ensinar. Ora, Jesus também ensinava debaixo de um alpendre, o pórtico de Salomão (João 10:23). Quanto ao conteúdo, o apelo à auto-renúncia é idêntico ao apelo ao autocontrolo porque só quem pratica o autocontrolo está disposto e é capaz de seguir o caminho da auto-renúncia. O reconhecimento de que a nossa vida é uma semente e que o nosso olhar deve estar na realidade do nosso potencial e não no circunstancialismo da nossa pequenez recorda ao estóico a procura da razão universal e não a prática ou a aceitação do que é aparente e transitório.

E quando Jesus afirma que onde Ele estiver aí estará também o Seu servo, o estóico recorda certamente a igualdade entre o servo e o livre quanto à sua condição humana.

Mas Jesus vai mais longe e afirma que quem O serve, que quem O segue será honrado pelo Pai, o que significa que para lá de tudo quanto é aparente não se encontra uma força impessoal, cega e insensível, mas o Criador pessoal que pode ser encontrado quando O buscarmos de todo o coração e com quem podemos estabelecer uma relação de filho para pai, baseada na obediência e no amor.

SAC, 29 de Novembro de 2022