© João Tomaz Parreira
A crise – para usar um termo inócuo – entre árabes e judeus, é um problema com origem numa semente apressada, não obstante os oitenta e seis anos de Abrão.
A falha começou no patriarca, ao dar ouvidos a Sarai, e colocaria em dificuldades o futuro povo de Israel. Abrão –antes ainda de ser Abraão- foi investido numa missão divina, mas ele não era a missão e ao confundir a sua humanidade com a plenitude divina, fez nascer um problema chamado Ismael, o qual, como tudo o filho que nasce, não tem culpa nem do passado nem do presente nem do futuro.
No entanto, a misericórdia de Deus em compor estragos e restaurar vasos quebrados, manifestou-se em Hagar. “Eis que concebeste e terás um filho (…) porquanto o Senhor ouviu a tua aflição” (Gn 16,11)
As mimetizações dos planos divinos nunca se traduzem em melhores sucessos na vida do Homem ou da Igreja. Tentar copiar Deus na sua intervenção sobre a História conduz a maus resultados. “Ismael (…) será homem bravo, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele” (16,12)
No que concerne a Ismael e aos seus descendentes, os ismaelitas ( não confundir com ismaelismo, doutrina religiosa), a promessa cumpriu-se para desespero de Israel. Causas que não se extinguem, trazem efeitos imorredoiros. É assim a relação entre judeus e árabes, entre o actual Estado de Israel e a sua vizinhança palestiniana e árabe, no sentido geral e, sobretudo, no religioso.
Consultando a “wikipédia” antes de rebuscarmos a história em papel, lemos sobre os ismaelitas a sinopse da sua postura religiosa, que não anda afastada de todo do Velho Testamento:
“À semelhança dos outros muçulmanos, os ismaelitas acreditam num único deus e no profeta Maomé como mensageiro divino. O pensamento ismaelita apresenta igualmente uma visão cíclica, desenrolando-se a história ao longo de sete eras. Cada uma destas eras é iniciada por um profeta, que traz consigo uma escritura sagrada. Cada profeta é acompanhado por um companheiro silencioso, que revela os aspectos esotéricos da escritura. Os seis primeiros ciclos estiveram associados aos profetas Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Maomé. O companheiro silencioso de Maomé foi Ismael, que regressará no futuro para ser o profeta do sétimo ciclo.”
Mas para desespero da humanidade e dos judeus em particular, outro “profeta” se adiantou e está registado na História Contemporânea como Adolfo Hitler.
O ABU ALI DA HISTÓRIA DO SÉCULO XX
Quando Hitler tomou o poder, apesar de tudo democraticamente, em 1933, telegramas de felicitações foram despachados das capitais árabes. Em 1937, a sinistra figura quase aristocrática da propaganda nazi, Joseph Goebbels, louvava “a racial consciência” dos árabes, fazendo notar de um modo absurdamente poético que “bandeiras nazis ondulavam na Palestina e adornavam as suas casas com a cruz suástica e retratos de Hitler”.
As águas da História, seja do que for, têm a vantagem de mostrar a sujidade das acções, apesar de todas as tentativas de branqueamento e, não poucas vezes, o bebé é deitado fora com a água do banho.
Um exemplo? A mistura “da cruz suástica e da cruz cristã”, dos Deutsche Christen, evangélicos, anti-semitas e apoiantes do Partido Nazi, um desses casos das águas sujas do banho que podemos ler na História, e nas obras de Dietrich Bonhoeffer e Karl Barth; este pregando vigorosamente pela “Igreja Confessante”, pela pureza da Igreja Evangélica; aquele, como membro fundador da mesma Igreja “Bekennende Kirch”, é condenado à morte pela forca no Campo de Concentração de Flossenburg em 1945.
A verdade é que Hitler soube aproveitar-se do reposicionamento dos pensamentos cristãos, divididos entre servir a Cristo mesmo sob a pressão nazi e servir o regime para obter benesses. Chegou-se ao absurdo de os Deutsche Christen se apresentarem como os “SA (Tropas de Assalto) de Jesus Cristo na luta pela destruição dos males físicos, sociais e espirituais”, daí à ajuda no extermínio dos judeus e na prisão dos cristãos evangélicos fiéis à Palavra de Deus, foi o passo que se conhece na tragédia do nazismo.
Portanto, Hitler vogava bem em duas águas: a dos favores dos “cristãos alemães” e a da glorificação do mundo árabe; apesar do próprio Hitler considerar os árabes como raça também inferior.
Abu – Pai em árabe-, seguido de Ali, no contexto histórico, era o sobrenome islamizado atribuído a Hitler, fundamentalmente pela sua liderança que se presumia mundial e pelo seu programa de dizimação dos judeus. Era um endeusamento. Uma canção popular da década de 30, nas ruas de Damasco, dizia: “Não mais Monsieur, não mais Mister. No Céu Allah, na Terra Hitler”.
Abu Ali e a sua obra fundacional, o “Mein Kampf” com as suas teorias do nacionalismo, da ditadura, da raça superior e do anti-semitismo, desde 1930 que impressionaram os estados árabes. A primeira tentativa para traduzir a obra para o idioma arábico iniciou-se cedo, por volta daquele ano, quando começaram a aparecer excertos do livro nos jornais árabes. A tradução surgiu definitivamente no Cairo em 1937, com a significante aprovação da Alemanha Nazi.
Na Palestina, por outro lado, a literatura hebraica entre 1940 e 1944 trazia a público cerca de vinte mil volumes de poesia, romance, ensaios, que afirmavam em hebreu a existência de um povo, enquanto na Europa Abu Ali se preparava para concluir a Solução Final, o holocausto de milhões de judeus.
Desse tempo, os anos da II Guerra e do Holocausto, a poesia de Uri Zevi Greenberg (1896-1981), para entendermos a relação ancestral do hebreu com o seu Deus : A minha boca é uma ferida aberta / Por isso, todo nu, disse ao meu Deus: duramente / Tens trabalhado sobre mim / Agora, eis aqui a noite: Tréguas! Repousemos os dois.(Versão minha)