A MARSELHESA DO PROTESTANTISMO
© João Tomaz Parreira
Martinho Lutero, provavelmente antes de 1529, usou um processo linguístico a que chamaríamos linguagem figurada, no seu poema/hino “Castelo Forte” para designar Deus e a Sua actividade em relação aos crentes cristãos e fê-lo inserir na lírica religiosa do seu tempo. Com certeza compondo-o no seu saltério. Não se esperaria menos do doutor que renovou catecismos, cantos eclesiásticos, livros devocionais para falarem a língua do povo.
Podemos achar na leitura de “Castelo Forte” que existem hipérboles em demasia, mas a hyperbolê (no grego, “transporte para cima”), relacionando-a com a Divindade, não é um exagero.
“O Castelo Forte” é, se quisermos, um monólogo interior, cantável obviamente, hino congregacional, no qual tomamos consciência de nós próprios, de quão frágeis somos, e em que a alma humana se posiciona resguardada no Criador e louvando-O como fortaleza segura, ciente de que a sua força humana é débil sem Deus.
Há também, ao estilo da imagem medieval, o Cristo como guerreiro invencível, numa espécie de teomaquia (theomakhia, luta de deuses) alegórica para o ensino dos cristãos.
Existem no poema de Lutero várias combinações de signos, conforme com a actual semiologia, que, entrecruzando-se vão do temporal ao eterno, do humano ao divino. Longe de haver, de todo, uma materialização do divino (um castelo), digamos assim, entendemos melhor a fortaleza de Deus na qual o crente habita. No alemão de Lutero é assim:
“Eine feste burg ist unser Gott,
Eine gute wehr und waffen”
“Castelo forte”, Deus como um refúgio inexpugnável, um lugar de tranquilidade onde se repousa porque há Quem lute por nós, daí a “espada e o bom escudo? Todavia estes versos apresentam também um referencial que nos incita a lutar, a não sermos passivos, escondidos em Deus mas de peito aberto na luta contra o Mal e o diabo. Na versão em português:
“Se nos quisessem devorar Demónios não contados,
Não nos podiam assustar, nem somos derrotados”
Desde logo, a mais simples associação que o Reformador faz entre um castelo forte e o nosso Deus e a nossa luta sob o comando do Cristo Invencível, na linguagem alegórica medieval.
A motivação de Martinho foi a Fé, mas também a razão da História, da sua história de vida, em bom rigor, Lutero não descreve o Castelo, que poderia ser a imagem do castelo de Wartburg onde traduziu a Bíblia, ele exprime o Castelo, sobretudo Quem é e o que representa. É que na Poética a expressão é mais importante que a descrição, isto seguindo o ensino de Roland Barthes e Ferdinand Saussure.
Começando a leitura do texto poético “Castelo Forte”, podemos perceber que se trata também, e sobretudo, de um intertexto que parte de um Salmo. A intertextualidade com o salmo 46, de que se desconhece o autor, sabendo nós apenas que é um cântico dos Filhos de Coré, é evidente. O poema luterano supõe outro poema, o salmo referido, e assim por diante poderia e pode ser objecto de estudo linguístico.
“Deus é o nosso refúgio e a nossa força;
é a nossa ajuda nos momentos de angústia.
Por isso, não temos medo,
Mesmo que a terra se ponha a tremer”
(Salmo 46, O Livro dos Salmos, tradução em português moderno)
Como poema pertence à lírica religiosa do Século XVI. Este e outros trabalhos de Martinho Lutero, escritos polémicos, colecções de poesia religiosa e, sobretudo, a tradução da Bíblia entre 1522 e 1534, são factores decisivos para a unidade da língua alemã, no plano cultural, social, literário e político. No plano religioso, o mais importante porque fundacional, foi a sua obra teológica que lutou e luta ainda contra a autoridade de Roma. É o exemplo mais célebre da hínica religiosa luterana. Diz-se que depois se transformou na “Marselhesa do Protestantismo ou da Reforma”.
Com alguma reserva por causa da incerteza das datas, o poeta germânico Heinrich Heine (1797-1856), um autor devotado à Reforma, cristão luterano convertido do judaísmo, escreveu que o hino terá sido cantado por Lutero e seus companheiros quando entraram para a Dieta de Worms, em 1521.
Com certeza porque Lutero fora convocado para a Dieta de Worms pelo imperador Carlos V que havia ordenado a destruição dos escritos do reformador e pairava no ar a ameaça da fogueira para o “herege”. Ao édito do imperador, Lutero responde “visa atemorizar-me; mas Cristo está vivo, e eu irei a Worms, não obstante todas as portas do inferno”. Mesmo que se apoderassem da sua pessoa, como afirmou, “deixemos a cousa entregue a Deus. (…) Não fugirei, ainda menos revogarei, porque não poderei fazer uma cousa nem outra sem pôr em perigo a salvação de muitas almas”.
Como na letra do poema/hino “Castelo Forte”, Lutero escreveria “Ainda que fizessem uma fogueira que subisse até ao céu entre Wittemberga e Worms, eu iria lá… e confessaria Jesus Cristo” (“Lutero- Ensaio Biográfico”, Sinodal, 1969- 98-99).
De certo modo, por esta e outras razões históricas, este hino poderia ser facilmente transformado em passado, isto é, em história, se ao longo destes cinco séculos milhões e milhões de crentes cristãos evangélicos o não tivessem entoado, congregacionalmente, com fé e coragem. Deram-lhe outra dimensão, saiu da cronologia para viver na temporalidade, dentro do culto ao Eterno Deus, o “Castelo Forte” na criatividade inspirada de Martinho Lutero. ©