(OS) CODEX EPHREM DA PÓS-MODERNIDADE
© João Tomaz Parreira
«Porque nós não somos, como muitos, falsificadores da palavra de Deus.» II Co 2,17
Fazer uma ligação entre o Codex Ephrem e a pós-modernidade é ensaiar uma ponte entre o século V e os dias de hoje, embora pareça um mal entendido aos mais sensíveis que se restringem a padrões rígidos de interpretação de eventos actuais.
Sim, porque à partida parece que pretendemos misturar o que foi uma das bases manuscritas para a formação e estabelecimento dos canones dos Velho e Novo Testamentos e qualquer ética ou filosofia do pós-moderno.
O chamado Codex Ephrem, que tem menor importância que o Sinaiticus, e.g., «foi» um manuscrito de ambas as partes de Bíblia, designadamente do NT, do século V, e está conservado na Biblioteca Nacional, em Paris. «Foi» um manuscrito que agora se lê dificilmente, porque um copista resolveu apagar do pergaminho os textos sagrados e reescrever outras coisas. A este trabalho de raspagem e reescrita chama-se palimpsesto (do grego pálin e psestos, novo e raspar).
O Codex Ephraemi Reescritus, assim também conhecido, é, segundo os especialistas, o último do grupo em que se reúnem, com ele próprio, os quatro manuscritos da Bíblia Grega , os Codex Sinaiticus, Alexandrinus e Vaticanus.
O texto que foi escrito por cima do Codex inicial, no século XII ou XIII, por um autor sírio, o Efraem, contém as obras desse, crónicas religiosas, de onde sobressaem as ditas sobre a história eclesiástica de João em Éfeso.
Há literatura sobre o assunto que nos assegura que os textos originais do pergaminho, os textos bíblicos digamos assim para generalizar, não foram inteiramente raspados e podem ainda ser lidos, penosamente embora, sob meios tecnológicos modernos.
A Palavra de Deus parece ter desaparecido sob as opiniões e as histórias, ainda que eclesiásticas, de homens alegadamente piedosos. O palimpsesto foi um contentor de duas mensagens. À luz da crítica literária contemporânea e de qualquer dicionário das comunicações de massa, é material polissémico, porque tem vários sentidos.
As Releituras
Considerando que a Bíblia Sagrada é o Livro mais vendido, 5-6 biliões de cópias, e por conseguinte o mais lido, é natural que seja objecto de múltiplas e díspares releituras, mesmo até por crentes e, com certeza, por ateus. E tais releituras são normalmente efetuadas a dois níveis: ao teológico e ao antropológico; Deus e o Homem. Os crentes procuram na Palavra divina o Pai; os ateus, os não-crentes, demandam quase de um modo edipiano contradizê-Lo e mesmo eliminá-Lo.
No século XVIII, sob uma particular visão socialista, Proudhon já relia certamente o apóstolo Paulo, alegando que as suas formas de ideal (quereria dizer doutrina ética e social, moral e espiritual, etc.)eram bem definidas, mas caducas.
1.Sartre
Por exemplo, o filósofo Jean-Paul Sartre, mistura de católico (pelo pai) e de protestante (pela mãe), um céptico que passou cedo para o terreno do humanismo e da releitura negativista da fé cristã. Na sua autobiografia Les Mots (As Palavras), considera a perda da fé religiosa por uma releitura de um acontecimento religioso – perante as senhoras da família que acreditavam em Deus o tempo necessário para apreciar uma tocata no órgão da igreja; ou o avô que julgava parecer-se com Deus por causa da sua barba e costumava aparecer por trás do púlpito de onde se proferiam raios celestiais, vindo da sacristia para assustar os fiéis na missa.
Mas esta espécie de releitura, do nosso ponto de vista, não foi mais que uma posição material sobre aspectos religiosos, no sentido social da religião. Ainda não era o que Sartre viria a estabelecer depois, como as releituras de ética e moral, de espiritualidade e da existência que alguns dos seus mais famosos textos fariam. Dois apenas, para este raciocínio.
A Náusea, que é um beco sem saída, onde se entra para fugir de Deus. Onde a pessoa é apenas um indivíduo, sem importância, daí o nada finalizador. «Todos os objectos que me cercavam pareciam feitos da mesma matéria que eu, duma espécie de sofrimento ruim»- considerava a personagem, Roquentin. «Nada. Existi.»- diz. O outro beco sem saída é a peça Huis Clos , pela sua própria natureza de espaço fechado, onde uma releitura do inferno citado na Bíblia se torna no fogo sem consumição da consciência de cada pessoa, numa metáfora da morte, onde os actos de cada um atormentam o outro.
Seja como for, para Sartre Deus existia, o seu ateísmo era moral e provisório – dizia o escritor- estava ligado ao facto de Deus ainda se não lhe ter revelado.
No que concerne à criação por intermédio divino, e à finalidade do Criador em ter criado o homem, Sartre escrevia em A Náusea que «todo o existente nasce sem razão»; os homens como as coisas não tinham vontade de existir, somente não tinham outro remédio. Que releitura do Génesis tão desesperante e terrível, Deus criou o homem à existência para o punir?
2. José Saramago
Quanto ao romancista José Saramago poderíamos ficar conversados por aqui: «Deus é um problema». É o que o escritor vê nas Escrituras Sagradas, por isso procura insistentemente desde o controverso romance «O Evangelho Segundo Jesus Cristo» ( de 1992) reler e reinterpretar o Novo Testamento, por exemplo, no cerne que é a Salvação pela morte expiatória e vicária do Filho de Deus.
Saramago socorre-se de uma semiótica centrada em uma obra de arte de Albrecht Durer, «A Grande Paixão» renascentista, a partir da qual reinterpreta com os seus próprios símbolos anti-cristãos, que profanam o sagrado, toda a crucificação, como se esta fosse um mito, mesmo considerando-a bíblica. Mas o que o nosso escritor faz, é pôr em causa a autoridade de Bíblia numa matéria tão vital.
Passados dezassete anos, Saramago volta a fazer leituras bíblicas comprometidas com a profanação do sagrado.
No pré-lançamento do seu último romance, «Caim», de 2009, um semanário de referência – o Sol – disse que «não deixa de ser curiosa a concentração no tema Deus. A preocupação em si já é sintomática da centralidade da questão.»
É para o escritor o chamado «factor Deus», não se sabendo bem se como uma unidade simples ou se causa de vários efeitos.
3.Congresso Multidisciplinar de Estudos da Bíblia
O evento ocorreu em 2009 com o apoio de instituições marcantes nos estudos das Sagradas Escrituras de Israel, desde o Rockfeller Archeological Museum, o Museum of Jewich People, à École Biblique et Archéologique, entre Jersusalém e Tel-Aviv. Os pesquisadores protestantes, pentecostais e judaicos religião de Moisés. Alguns resultados chegaram, designadamente, com o que chamaram de nova visão sobre o que referem ser a «parte mitológica» da Bíblia. Houve sinais de que é «preciso» despir a mística do Bereshit( Génesis) e vestir alguns episódios com a capa do científico, criticamente. Adão e Eva foram casal ? Ou uma geração? Caim e Abel, classes em tensão ou irmãos de facto?
4. Der Mensch is gut! – O Homem é Bom!
Depois da catástrofe da I Grande Guerra e da hecatombe que dizimara nas lamas das trincheiras milhões de europeus, o estado de espírito da Europa parecia elevar-se acima das realidades e definia que o Homem era Bom. O pacifismo que nascia das cinzas da mente do homem, em 1917, se legitimamente podia rejeitar a guerra, não podia reformular a doutrina da Queda, nem do pecado original, nem das sementes do Mal que o Diabo implantara no coração humano.
Na teologia protestante das décadas de 30 e 40, o idealismo apesar dos tumores na Europa carreava para a discussão bíblica e escolar o pacifismo de pensadores de grande nível cristão e intelectual como Dietrich Bonhoeffer.
Não se compreendia muito bem como o homem havia chegado à maioridade. Compreende-se, por assim dizer, a chegada do homem, do ponto de vista cristão, ao posicionamento de discípulo de Cristo ao lermos o seu livro «Discipulado», um homem dependente de Cristo Jesus, obediente à vontade divina, homem sem poder passar sem Deus, poderia ser um homem solitário («o chamado de Jesus ao discipulado faz do discípulo um ser solitário- escreveu», mas nunca independente, ou dependente de si mesmo.
E lendo também «Tentação», perceber-se-á a fragilidade humana exposta perante as crises ou os ataques do diabo.
Não se entende, porém, o homem chegado à maioridade, que levou alguns seguidores seus a reler que proclamava «o homem agora pode passar sem Deus».
Aprender a viver sem Deus, seria uma releitura da religião nos anos 40 perante o descalabro moral e social da Europa nazi, e esta suposta maioridade do homem chegaria aos teólogos da década de 1960.
As releituras bíblicas tinham que ser agora interpretações não-religiosas de conceitos bíblicos -escreveriam, contudo, os interpretes das obras do mesmo Bonhoeffer.
Pegava-se nos textos bíblicos, nos conceitos milenares das Escrituras Sagradas, na revelação neo-testamentária de Deus em Cristo, na espiritualidade, raspava-se o original para reescrever o que o secularismo sempre defendera: Deus não é necessário para nada, o homem é que é tudo.
©